Os anúncios de projetos para produção de hidrogênio de baixo carbono a partir de eletrólise da água, assim como os de combustíveis avançados que utilizam esse hidrogênio, são cada vez mais constantes no cenário global e nacional.
Projetos desse tipo requerem capacidade significativa de geração de energia renovável, o que suscita o interesse crítico de que a eletricidade utilizada seja mesmo de baixo carbono e que esses projetos contribuam efetivamente para os objetivos de redução de emissões de gases de efeito estufa (GEE).
Formuladores de políticas e normas buscam endereçar essa questão a partir de diferentes critérios, sendo um deles a chamada “adicionalidade”.
Tendo na regulação europeia para hidrogênio a sua aplicação de maior destaque, ela pode ser definida como o requisito de que a eletricidade renovável utilizada para a produção de hidrogênio seja proveniente de novos projetos de geração, ou seja, que adicionem capacidade limpa à matriz elétrica local.
A lógica é evitar que a eletricidade renovável presente no mix elétrico existente seja desviada para produzir hidrogênio, o que poderia levar à compensação, para o atendimento do consumo dos demais usuários do grid, pela expansão da geração com fontes fósseis, como gás natural e carvão.
Portanto, a energia não precisaria apenas ser renovável (como esperado), seria necessário saber quanto efetivamente agregou em termos de expansão da matriz elétrica.
Um critério desse tipo faz sentido em países e regiões onde a maior parcela da geração elétrica é de origem fóssil e, como é o caso da Europa, há menor velocidade de crescimento da demanda em geral somada a uma tendência de eletrificação da economia. Num contexto como esse, o risco de o hidrogênio de baixo carbono capturar a oferta elétrica renovável é absolutamente plausível.
Entretanto, a aplicação da adicionalidade em outras geografias vem sendo questionada internacionalmente quanto à sua abrangência e rigidez.
Em 2024, no contexto da presidência brasileira do G20, a Agência Internacional de Energia (IEA, em inglês) destacou em uma publicação sobre combustíveis sustentáveis que critérios excessivamente rigorosos, como os associados à adicionalidade, podem desacelerar investimentos e dificultar o avanço de cadeias de suprimento e infraestrutura relacionadas.
Em meio a essas discussões, o Brasil se torna um dos principais interessados na perspectiva que poderá prevalecer.
O país é uma exceção global em termos de renovabilidade elétrica. Dados oficiais mostram que 86% da geração nacional provém de fontes renováveis, índice que chega a 96% quando se considera apenas o Sistema Interligado Nacional (SIN).
Essa realidade contrasta com a média mundial, onde 61% da geração elétrica ainda depende de combustíveis fósseis. Em 2024, o mix elétrico brasileiro já alcançou níveis de renovabilidade que muitos países projetam atingir, em cenários otimistas, apenas nas próximas duas décadas, consolidando-se como uma referência global na descarbonização do setor.
No entanto, a aplicação indiscriminada da regra de adicionalidade acabaria penalizando o país. Sua grande renovabilidade é legada, com muitos investimentos renováveis já concretizados e localizações ótimas para geração de energia limpa amplamente exploradas.
Isso eleva os custos de expansão, pois os novos projetos tendem a se concentrar em áreas com potencial técnico inferior ao das já exploradas que, mesmo sendo de boa qualidade, demandam maiores investimentos para sua viabilização.
De qualquer forma, fontes como a solar e a eólica já são altamente competitivas do ponto de vista econômico no Brasil, quando comparadas às tecnologias fósseis. Assim, o país tem totais condições de continuar expandindo esse tipo de geração mesmo que haja um crescimento expressivo da demanda vinculada à produção de hidrogênio, consolidando sua liderança em energia limpa.
É crítico pontuar, porém, que uma defesa da flexibilização da adicionalidade não se trata de desconsideração da necessidade de rastreamento adequado da integridade ambiental da geração elétrica, inclusive por aqui.
Porém, é necessário que se busquem abordagens regulatórias a nível regional e global que assegurem o potencial climático do hidrogênio e combustíveis avançados sem que isso seja injusto com países como o Brasil, que, nas últimas duas décadas, realizaram investimentos substanciais em fontes renováveis e construíram um legado sólido em termos de descarbonização.
Pedro Guedes é analista de Transição Energética para Biocombustível do Instituto E+ Transição Energética.