A baixa capacidade de investimentos públicos e um ambiente regulatório hostil à entrada de novos agentes no mercado de gás, pode deixar a Bolívia em uma posição frágil para competir com as alternativas de suprimento de gás no Brasil, especialmente o gás natural liquefeito (GNL) importado e a própria produção crescente do pré-sal, afirma Mauricio Medinaceli, ex-ministro de Hidrocarbonetos da Bolívia, entre 2005 e 2006.
“A abertura do mercado de gás no Brasil pode ser vista como uma ameaça à Bolívia, se Bolívia não fizer nada e deixar que ganhem este mercado o gás da Ásia, o gás da África, por meio do GNL, e inclusive do próprio pré-sal”, diz.
Em muitos pontos, Medinaceli parece estar falando do Brasil, onde há uma discussão – intensificada pela Lei do Gás – em que o governo e mercado vêm defendendo reformas para desenvolver a demanda pelo energético, que justifiquem novos investimentos em suprimento de energia, enquanto a Petrobras deixa a posição dominante no mercado
Na Bolívia, contudo, os gargalos começam na exploração, na descoberta de novas reservas, para o país continuar sendo uma fonte confiável de gás.
“Bolívia tem que fazer sua tarefa nos próximos anos. Mudando as instituições e modificando a legislação no país. Abrir oportunidades para os investimentos privados estrangeiros ou nacionais. E ter um diálogo aberto e honesto com Brasil e para ver qual é o futuro e como pode atuar nos curto e longo prazos”, afirma.
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Medinaceli, que atua como consultor no mercado de óleo e gás, entende que independente do resultado das eleições presidenciais deste domingo (18), o governo que assumir não terá como bancar políticas populistas.
“Apenas posso dizer que, seja um governo de esquerda ou de direita, a economia fará que eles tenham que tomar medidas de cunho liberal, abrir para investimentos privados”, afirma nesta entrevista à epbr.
Medinaceli compartilha da visão que o gás natural terá um papel a cumprir na transição energética, mas isso não torna o energético imune à pressão de novas fontes de energia.
“A pergunta é se no plano nacional boliviano ainda queremos aproveitar essa janela de oportunidades enquanto o gás tenha valor. É necessário vender o gás enquanto ele tenha valor. Porque daqui a 50 anos, o valor do gás vai ser muito menor do que é agora. Não vai desaparecer, mas sua demanda será muito menor”, avalia.
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Na íntegra, a entrevista com o economista Mauricio Medinaceli, ex-ministro de Hidrocarbonetos da Bolívia e consultor no mercado de petróleo e gás
Atualmente, a Bolívia possui algum plano estratégico para exploração do gás natural?
Da minha perspectiva, a última politica de gás natural séria que teve Bolívia e a nível nacional foi o acordo de exportação de gás entre Bolívia e Brasil. Porque esse projeto nacional transcendeu os governos da época, tanto de Brasil, quanto da Bolívia.
Não importava quem fosse o presidente, se sabia que havia uma rota definida, que era a exportação de gás para Brasil, que começou em 1999 e durante vinte anos se executa esse projeto.
A partir disso, não houve uma política que transcenda um governo. O que acontece é que entra outro governo, com outra visão, ou pior: pode entrar outro ministro, também com outra visão, que é o que aconteceu com o governo boliviano nos últimos quinze anos, em que cada presidente da estatal [YPFB] ou ministro de hidrocarbonetos desenhou uma agenda muito particular, que não se traduziu em ações, ficou no papel.
E que agendas são essas?
A política de hidrocarbonetos na Bolívia é sobretudo reativa e não propositiva. Ela reage à demanda do Brasil, à demanda do Paraguai, Argentina. Então, quando esses países pediram gás, Bolívia enviou o gás, sem uma estratégia clara.
Essa falta de estratégia fez com que o país, nos últimos quinze anos, não tivesse uma política de exploração séria, com recuperação de reservas, que iam se esgotando, para abastecer os mercados.
Isso fez com que nos últimos anos do governo Morales, Bolívia não pudesse mandar os volumes comprometidos com Brasil e Argentina. Isso levou o país a renegociar ambos os contratos, com Argentina primeiro e o Brasil depois, para baixar os volumes de entrega.
A situação que estamos agora é de um limite na capacidade de produção. Não é uma situação em que a demanda não está ativa, a Bolívia não pode vender tudo o que, potencialmente, o Brasil e a Argentina poderiam demandar.
Quanto à renegociação dos contratos, não se deve aos efeitos da pandemia?
A redução do volume veio em dezembro do ano passado, antes da pandemia. Agora é que vimos uma declaração pelo tema de força maior. Essa redução de volumes e preços afetará entre 1% e 1,5% do PIB boliviano este ano. Esse é o “efeito covid”.
Com a Petrobras reduzindo os contratos de importação de gás boliviano da YPFB, como você enxerga a relação entre as duas empresas, e consequentemente entre Brasil e Bolívia?
Três palavras me vêm à cabeça. A primeira é lealdade. Com a Petrobras, a YPFB abriu o mercado do gás no Brasil, por meio do gás boliviano. Grande parte do mercado que se tem no Brasil, se deve aos esforços da Petrobras, para o mal ou bem, como julgue, para abrir o mercado ao gás. Esse projeto foi muito audacioso, porque não havia mercado no Brasil, nem reservas suficientes na Bolívia. Portanto, era uma aposta de alto risco, que finalmente saiu bem.
A segunda palavra é respeito. Porque Brasil está apostando em abrir o mercado à inciativa privada. E a Bolívia não pode dizer se isso lhe parece bom ou ruim, simplesmente respeitar a decisão soberana de um país, e nós temos que nos adaptar a essa nova situação de mercado, não há outra opção.
A terceira palavra é a amizade. Independentemente que se siga ou não vendendo gás ao Brasil, a maior fronteira que Bolívia possui é com o Brasil. E o comércio perdurará pelos próximos 50, 100 anos, exportando ou não o gás natural. Essa relação de longo prazo entre os dois países não se pode quebrar por um governo de ocasião em qualquer dos dois países.
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E como essa abertura, a aprovação da nova Lei do Gás no Brasil, afeta a indústria de gás boliviana?
A abertura do mercado de gás no Brasil pode ser vista como uma ameaça à Bolívia, se Bolívia não fizer nada e deixar que ganhem este mercado o gás da Ásia, o gás da África, por meio do GNL, e inclusive do próprio pré-sal.
Por outro lado, pode ser uma grande oportunidade se Bolívia fizer sua tarefa, descobrindo novas reservas de gás, adaptando-se às novas condições do mercado, explorando a possibilidade de investir no Brasil, por meio da YPFB.
Se houvesse uma relação de negócios conveniente para ambas as partes, as coisas funcionariam. A posição da Bolívia neste momento em matéria de negociação está muito debilitada, porque não temos a capacidade de produção que potencialmente teríamos.
Mas o gás boliviano seguirá competitivo para o mercado brasileiro?
A parte positiva é que existe um gasoduto que ainda não está pago. Porque a Petrobras construiu o gasoduto, que tinha que ser pago em volume durante quarenta anos. Já se passaram vinte anos, mas ainda restam mais vinte para pagar a Petrobras. Por esse motivo, Petrobras não vai deixar que não se transporte gás por este duto, uma vez que precisa recuperar o investimento feito.
A fronteira do Mato Grosso é um mercado natural para o gás boliviano, porque é mais barato do que levar GNL de um porto no Brasil até o Mato Grosso. A distância é muito grande, existe uma rede de gasoduto, mas não é suficiente.
Então, a Bolívia tem uma vantagem de abastecer os mercados da fronteira. Há duvidas quanto a abastecer São Paulo, porque competir com o GNL é muito complexo neste momento. Mas na região do Mato Grosso existem opções com termoelétricas.
E quais sãos os principais desafios para a competitividade do gás boliviano?
Bolívia tem que fazer sua tarefa nos próximos anos. Mudando as instituições e modificando a legislação no país. Abrir oportunidades para os investimentos privados estrangeiros ou nacionais. E ter um diálogo aberto e honesto com Brasil e para ver qual é o futuro e como pode atuar nos curto e longo prazos.
Além disso, falta de investimento em exploração de novos poços. Por essa razão que, em dezembro do ano passado, foi feito um acordo entre Petrobras e YPFB para diminuir o volume mínimo transportado no Gasbol.
A presença estatal na Bolívia a frente da exploração do gás atrapalha?
Não necessariamente. Empresas privadas, desde o governo Morales, ficaram no país. Um dos temas centrais na Bolívia são os impostos. O sistema de impostos não funciona para os projetos de exploração, não há nenhum incentivo para a iniciativa privada investir na Bolívia.
E a YPFB poderia investir também no Brasil, buscar uma posição no pré-sal?
Não acredito. No máximo, a YPFB podia ter alguma participação em alguma distribuidora de gás no Brasil, mas estamos muito longe de fazer alguma atividade exploratória no pré-sal.
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Como você avalia o papel do gás natural como o combustível da transição energética?
O gás natural contamina menos que o petróleo e seus derivados, mas contamina mais que a energia solar. Creio que houve muito investimento nos últimos dez anos, tanto em infraestrutura , como em upstream [exploração e produção] de gás natural, e esse investimento tem que ser recuperado. Os bancos estão fomentando o uso de gás natural para recuperar o financiamento aos projetos da década passada, como o pré- sal.
É necessário que se venda esse petróleo e gás. Os que investiram nesses campos não estão investindo em energia verde ate que recuperam o investimento no pré-sal. Uma vez que recuperarem, virá a nova energia.
Eu trabalho na Ásia e lá, particularmente, e eu vejo que a aposta é clara na energia solar. A China está investindo uma quantidade gigante em tecnologia solar, e a Arábia Saudita também. Eles estão conscientes que o futuro será solar. A dúvida é se será nos próximos 50, 80 anos. Aí é que vão acontecer grande parte dos investimentos.
E como a Bolívia se encontra nesta transição?
A pergunta é se no plano nacional boliviano ainda queremos aproveitar essa janela de oportunidades enquanto o gás tenha valor. É necessário vender o gás enquanto ele tenha valor. Porque daqui a 50 anos, o valor do gás vai ser muito menor do que é agora. Não vai desaparecer, mas sua demanda será muito menor.
O que o sr. esperar do resultado das eleições na Bolívia?
Apenas posso dizer que, seja um governo de esquerda ou de direita, a economia fará que eles tenham que tomar medidas de cunho liberal, abrir para investimentos privados, desregular o tipo de câmbio, mudar leis, porque já não temos mais capacidade suportar políticas populistas.
Mesmo que entre o governo do candidato do anterior presidente Evo Morales, creio que a economia o obrigará a tomar medidas que talvez não sejam do agrado do povo.
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