Quando se discute a modernização do setor elétrico geralmente se menciona a necessidade de investimentos em “redes inteligentes” para melhor gerir os fluxos nas redes de transmissão e distribuição. Também se aborda a necessidade de “medição inteligente” que permita uma precificação mais precisa em função do padrão do consumo de cada usuário do sistema.
No entanto não se ouve falar da necessidade de adotar “encargos inteligentes”. Esta lacuna precisa ser endereçada, pois as mudanças na matriz elétrica introduzem padrões de uso dos serviços sistêmicos muito diferenciados que requerem alocação mais inteligente.
Os encargos são utilizados para cobrir os custos de serviços sistêmicos como: (i) os Encargos pelo Uso do Sistema de Transmissão e de Distribuição (EUST e EUSD); (ii) os Encargos de Serviços do Sistema (ESS); (iii) os Encargos de Energia de Reserva (EER); e (iv) os Encargos de Potência para Reserva de Capacidade (ERCAP).
Os custos incorridos na prestação destes serviços sistêmicos são primordialmente derivados dos investimentos realizados na implantação dos ativos requeridos para prover tais serviços. Isto implica que os custos são predominantemente fixos, sendo necessário conceber formas para ratear tais custos entre os usuários do sistema por meio de encargos.
A questão é que consumidores atendidos por fontes não controláveis (seja de geração centralizada ou de geração distribuída) e autoprodutores e prossumidores requerem um conjunto de serviços sistêmicos muito distintos dos demandados pelos demais usuários do sistema.
Portanto, torna-se necessário estabelecer encargos mais sofisticados que possam alocar os custos dos serviços sistêmicos entre os usuários que efetivamente requerem tais serviços em função do seu respectivo padrão de uso de tais ativos. Chamaremos estes encargos mais sofisticados de “encargos inteligentes”.
Tarifa de transmissão locacional. A Aneel já vem avançando neste sentido nos últimos anos com a intensificação do sinal locacional empregado para ratear os custos do uso do sistema de transmissão. Mas há outras frentes em que os encargos precisam ser aprimorados.
Reserva de potência operativa
Uma das frentes é a provisão de serviços ancilares, principalmente da Reserva de Potência Operativa (RPO). Atualmente, a RPO é provida por hidrelétricas participantes do Controle Automático de Geração (CAG) com base em uma estimativa defasada dos seus custos operacionais.
Há momentos em que tais geradores poderiam obter retornos muito maiores provendo mais energia no Mercado de Curto Prazo (MCP), mas estes agentes são privados de ofertar mais energia porque precisam resguardar parte de sua capacidade para prover a RPO.
O problema é agravado pela crescente variabilidade da carga líquida, o que eleva a demanda por RPO, deteriorando ainda mais o retorno destes empreendimentos.
O correto seria precificar a RPO em função do preço do MCP. Sempre que o preço do MCP fosse superior ao seu custo marginal, o valor pago pela RPO deveria aumentar na mesma proporção para tornar o agente indiferente quanto a ofertar energia ou prover RPO em determinado momento.
Isto proveria melhores incentivos para os empreendedores hidrelétricos ofertarem RPO e reduziria os custos sistêmicos ao diminuir a necessidade de se recorrer ao “despacho complementar para manutenção da reserva de potência operativa” proveniente de termelétricas a um custo muito maior (conforme a Resolução Normativa 1030/2022 da Aneel).
Leilões de reserva de capacidade na forma de potência
Outra frente em que os encargos poderiam ser aprimorados é na divisão dos custos relacionados à Reserva de Capacidade. Nos próximos Leilões de Reserva de Capacidade na Forma de Potência (LRCAP) pretende-se contratar recursos para atender a requisitos muito específicos.
No caso do LRCAP a ser realizado em 27 de junho de 2025, o objetivo é contratar recursos flexíveis capazes de atender à demanda por potência nos momentos mais críticos (conforme as diretrizes definidas na Portaria 96/2024).
Ainda este ano, o Ministério de Minas e Energia (MME) demonstra a intenção de contratar sistemas de armazenamento para absorver energia excedente em determinados momentos para uso em outros horários (conforme proposto na Consulta Pública MME 176/2024).
A contratação de recursos mais aderentes às novas necessidades do sistema elétrico é um passo importante, mas junto com ela é necessário prever novas regras para o ERCAP a fim de que o custo associado a estes ativos seja arcado pelos usuários que efetivamente os requerem.
Estes novos requisitos surgem do crescente desbalanceamento entre o perfil horossazonal da geração e do consumo, causado principalmente pela inserção das fontes eólica e solar. Neste caso, não cabe ratear os custos do LRCAP de forma uniforme entre todos os consumidores, pois resultaria no rateio de um custo para sanar um problema ocasionado pelos usuários que utilizam a energia proveniente da geração eólica e solar.
Os custos dos ativos requeridos para lidar com estes desbalanceamentos em determinados horários e períodos do ano devem ser arcados pelos usuários que lhes deram causa. Para isto, os encargos para recuperar os custos fixos destes ativos devem ser estruturados analogamente, e sendo cobrados dos usuários que demandam tais ativos nos determinados horários e períodos do ano.
Uma forma de alcançar este objetivo seria embutindo o encargo definido para cobrir os custos da provisão destes serviços sistêmicos no “custo marginal” (preço) ao qual tais ativos são disponibilizados no MCP. Desta forma, somente os usuários que efetivamente tenham que utilizar o recurso pagariam por ele.
Esta abordagem também proporcionaria mais previsibilidade aos preços do MCP ao disponibilizar uma reserva de capacidade com preços pré-definidos de forma paramétrica para o atendimento da carga nos momentos críticos.
Como a efetiva demanda por tais serviços pode variar de ano para ano, pode-se acumular déficits ou superávits na cobertura dos custos fixos destes ativos que teriam que ser tratados por meio de revisão anual do valor do encargo para o próximo ano, como é feito com o EER por meio da Conta de Energia de Reserva (CONER).
No caso dos sistemas de armazenamento, o ERCAP poderia prever: (i) um componente fixo para a cobertura dos seus custos fixos e (ii) um componente variável que seria baseado no custo da energia no período de recarga. Assim, o custo total seria recuperado a partir dos usuários que efetivamente demandam tal reserva de capacidade.
O uso de “encargos inteligentes” como nos três casos acima – pagamento pelo uso do sistema de transmissão, provisão de Reserva de Potência Operativa pelas hidrelétricas e cobertura dos custos dos Leilões de Reserva de Capacidade na Forma de Potência – resultaria em uma precificação mais precisa, o que é absolutamente essencial em um setor em que as decisões são, cada vez mais, tomadas de forma descentralizada. A melhor precificação resultaria em uma divisão dos custos mais justa e em uma expansão e operação mais eficiente.
Richard Hochstetler é diretor Regulatório do Instituto Acende Brasil.
Eduardo Müller Monteiro é diretor Executivo do Instituto Acende Brasil.