RIO – A Lei Complementar da Reforma Tributária que vai à sanção do presidente Lula nesta quinta (16/01) traz mudanças significativas para o mercado de gás natural.
O texto aprovado no Congresso inclui o gás:
- na lista de bens sujeitos ao Imposto Seletivo, com teto da alíquota em 0,25% sobre o valor da produção – à exceção do gás usado como insumo industrial e como matéria-prima, isento do IS nesses casos;
- e no regime especial para combustíveis – ou seja, o recolhimento do IBS e CBS no início da cadeia produtiva, com alíquotas uniformes em todo o território nacional.
Às vésperas da sanção presidencial ao PLP 68/2024 (regulamentação da reforma), um grupo de associações de diferentes elos da cadeia do gás tenta uma última cartada para convencer o governo a vetar os trechos que incluem o gás processado nas UPGNs e o biometano na monofasia.
Formado por representantes de produtores (IBP e Abpip), transportadoras (ATGás), termelétricas (Abraget) e o setor de biometano (ABiogás), o grupo enviou esta semana a representantes dos ministérios de Minas e Energia, Fazenda, MDIC e Casa Civil um estudo da encomendado junto à FGV Energia que tenta dimensionar o impacto da monofasia sobre a dinâmica do mercado de gás.
O trabalho estima que o regime monofásico representará a geração de cerca de R$ 9 bilhões de créditos a serem compensados/ressarcidos – o que por si só representa “complexidade indesejável” para o mercado de gás, que já convive com complexidades no sistema tributário atual.
Mas, afinal, por que a monofasia tem despertado a oposição da indústria de gás?
A seguir, a agência eixos apresenta um resumo das mudanças que estão por vir com a implementação do regime monofásico e os principais pontos de preocupação levantados pelo setor. Confira:
Haddad diz que vetos serão pontuais
A indústria do gás tenta derrubar a inclusão do gás na monofasia desde a tramitação no Congresso, mas sem sucesso. No fim de dezembro, o grupo chegou a enviar um pedido ao presidente Lula para o veto desse item específico do PLP 68/2024.
O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, afirmou nesta quarta (15/1), que começou a discutir com Lula os vetos ao PLP 68/2024, e adiantou que eles não alteram o mérito do texto aprovado pelo Congresso , mas se restringem a questões técnicas e pontuais.
“Nós estamos respeitando, no mérito, aquilo que o Congresso decidiu”, disse.
Em resposta ao pleito da indústria do gás, membros do governo pediram aos agentes, nas últimas semanas, dados mais objetivos sobre os impactos da monofasia sobre o setor, segundo fontes.
Os agentes do mercado contestam: alegam que a proposta vai no sentido contrário da simplificação e que, sem a regulamentação do regime especial (e sem a definição da alíquota do gás nesse modelo) não é possível calcular os impactos diretos sobre a carga tributária.
O que muda
Hoje, o mercado de gás natural opera num regime plurifásico: os diferentes impostos (ICMS, PIS/Cofins, por exemplo) incidem em diferentes elos da cadeia.
De fora da lei complementar 192/2022 (reforma do ICMS dos combustíveis), que prevê a uniformização das alíquotas no modelo ad rem (alíquotas fixas), o gás processado segue hoje a lógica do ad valorem (alíquota percentual sobre preços médios).
A reforma tributária propõe simplificar o sistema tributário brasileiro, com a substituição de cinco tributos (ICMS, ISS, IPI, PIS e Cofins) por três: o IBS e o CBS, que compõem o IVA dual; e o Imposto Seletivo.
E prevê uma alíquota única para bens, serviços e direitos, transferindo a tributação da origem para o destino.
O regime especial dos combustíveis, como o nome sugere, foge à regra, com previsão de recolhimento no início da cadeia produtiva.
O racional da proposta é coibir as evasões fiscais – um dos grandes problemas no mercado de combustíveis.
Para o gás, a mudança, portanto, está na passagem de um modelo polifásico para monofásico; e a adoção de uma alíquota uniforme ad rem, e não mais ad valorem.
Setor questiona simplificação prometida
Rodrigo Novo, coordenador do GT de tributação do gás no IBP, faz três ponderações sobre o novo modelo:
- a inclusão do gás natural no regime monofásico vai na contramão da simplificação prometida pela reforma tributária.
A indústria do gás tem manifestado preocupação, sobretudo, com os bilhões de reais que serão gerados em créditos tributários – e a complexidade e custos inerentes de lidar com eles.
- Esses créditos representam, na visão dos agentes, perdas de oportunidade de investimento. Daí os agentes alegam que o modelo é ineficiente.
“O governo passa a ter que gerir R$ 9 bilhões de créditos e restituições por ano que não precisaria [se o gás não entrasse no regime especial]’, afirma Novo.
“A verdade é que as empresas, tanto de processamento quanto transporte e distribuição, já têm muita dificuldade em lidar com os tributos hoje. E a monofasia não parece ser uma solução boa”, complementa o sócio da Infis Consultoria, Eduardo Pontes.
- a terceira preocupação é com o risco de um eventual aumento da carga tributária em si – um ponto que o setor tem tido dificuldades de comprovar, já que o regime especial dos combustíveis ainda será regulamentado no futuro.
A diretora de gás do IBP, Sylvie D’Apote, destaca, por sua vez, que essas questões todas trazidas pela monofasia podem prejudicar o desenvolvimento do mercado de gás.
“Pode engessar novos modelos de negócios por agentes que vão olhar para a tributação do gás e ver ali incertezas. O gás tem muitos concorrentes, como biomassa, as renováveis”, comenta.
Créditos são incertos
O PLP 68/2024 reconhece a possibilidade de apropriação de créditos por agentes que utilizem o gás como insumo – o projeto veda os créditos na aquisição de combustíveis destinados à distribuição, comercialização ou revenda.
A previsão de restituição, pelos agentes que usam o gás como insumo, é de 60 dias do recolhimento, pelo texto aprovado no Congresso.
Rodrigo Novo argumenta, contudo, que esse prazo não é, necessariamente, compatível com a dinâmica do mercado de gás.
“Não é o fluxo efetivo da indústria esse prazo. Esse gás, até chegar ao uso final como insumo, pode ter um ciclo maior – se for estocado por exemplo. E aí esses créditos vão ficar presos na cadeia, com impacto em capital de giro das empresas”, explicou.
No limite, o receio é que esses bilhões de reais em créditos fiquem “presos” no sistema – impactando, assim, o financeiro dos agentes.
“É um valor muito alto de antecipação de tributos ao governo e que vira um problema de fluxo de caixa para a cadeia. O risco é que até que a indústria recupere esse crédito esse valor já possa, ao fim, ter sido incluído no preço do gás”, complementou Pontes.
Novo sistema aumenta custos
Eduardo Pontes cita que mecanismos de ressarcimento de créditos tributários não são uma novidade no Brasil, mas que o histórico é de contenciosos no Judiciário para que os agentes consigam, de fato, recuperar os valores.
O receio no mercado de gás, hoje, é que o uso do gás como insumo – seja na indústria, seja na geração de energia, por exemplo – possa ser prejudicado por complexidades na gestão de créditos, cuja operacionalização ainda será regulamentada.
“A questão é como garantir que esse crédito vai chegar até ele, qual é o cálculo desse crédito”
‘Hoje, no novo mercado de gás, há a possibilidade desse gás passar por muitas mãos. Nesse rito da monofasia, o controle do crédito que vai ser recolhido no início de uma cadeia que pode ser tão longa vai ser dificultado”, comenta.
Pontes cita o caso do setor de combustíveis líquidos, que já lida hoje com o SCANC – uma obrigação acessória para controle da carga tributária de um elo da cadeia para outro.
Registra todas as fases da comercialização dos produtos, bem como os volumes movimentados, ao longo de toda a cadeia – dos produtores, importadores, formuladores, distribuidoras, TRRs, até chegar aos postos revendedores ou consumidores finais.
“Para que haja um controle desse crédito na monofasia pela indústria, no fim da cadeia, vai ter que ter mais obrigação acessória, outros controles que não têm hoje”
“E aí implementar um regime específico como esse [da monofasia para o gás] talvez vá gerar um pouco mais de complexidade”.
Setor pede tratamento do etanol
Conceitualmente, a percepção, entre os agentes do setor, é de que o modelo monofásico é incompatível com a complexidade da indústria do gás – e, por isso, mesmo ineficiente para lidar com a dinâmica desse setor.
Num mercado líquido, baseado em pontos virtuais de negociação como se almeja construir no gás, a molécula é vendida e revendida diversas vezes pelos comercializadores — ou pode até passar por um serviço de estocagem, por exemplo – antes de chegar ao consumidor final.
Essas operações podem ter margens diferentes que, no modelo monofásico, com a definição de uma alíquota uniforme no primeiro elo da cadeia (na UPGN), dificilmente serão capturadas corretamente.
Ao antecipar essa cobrança do imposto na UPGN, o Poder Público pode enfrentar não só dificuldades na hora de calibrar a alíquota uniforme.
O setor de gás pleteia, nesse sentido, o mesmo tratamento dado ao etanol na reforma tributária — ou seja, que a monofasia contemple apenas o GNV, concorrente dos combustíveis líquidos no transporte.
O etanol para outros fins, que não combustível veicular, não está incluído na monofasia — o que, segundo a FGV Energia, mostra a necessidade de considerar as especificidades de cada produto, para a simplificação do regime tributário.