O mercado de gás natural brasileiro passa por uma revolução silenciosa, marcada por esforços contínuos para transformar um ambiente historicamente dominado por monopólios em um espaço de concorrência aberta e dinâmica. Entre as iniciativas mais promissoras desse movimento está o gas release, um mecanismo projetado para descentralizar o controle do mercado e criar condições mais equitativas para novos entrantes.
Fundamentado na Lei nº 14.134/2021 e na Resolução nº 3/2022 do Conselho Nacional de Política Energética (CNPE), o gas release tem como objetivo aumentar a eficiência do mercado, reduzir custos para os consumidores e atrair novos investimentos para o setor.
Nos últimos meses, o gas release voltou ao centro das discussões no Brasil, não apenas pelo impacto potencial no mercado de energia, mas também devido às implicações políticas associadas. O tema ganhou tração no Congresso Nacional, onde debates sobre a modernização do setor energético esbarram em interesses econômicos e divergências ideológicas.
Parte dessas controvérsias reflete a resistência da Petrobras em adotar integralmente um modelo de maior competição, enquanto parlamentares e representantes do governo buscam um consenso sobre como equilibrar a abertura do mercado com a manutenção de segurança energética e competitividade nacional.
Na prática, o gas release obriga agentes dominantes, como a Petrobras, a disponibilizar parte de seus volumes de gás natural a outros participantes do mercado, por meio de leilões ou negociações diretas.
Essa estratégia já foi testada com sucesso em diversos países, incluindo Reino Unido, Alemanha, Itália e Espanha, e em todos os casos demonstrou ser uma ferramenta poderosa para diversificar a oferta, reduzir o poder de mercado de incumbentes e estimular a competição.
No Brasil, onde a Petrobras detém cerca de 70% da oferta, a aplicação desse mecanismo é vista não apenas como uma oportunidade, mas como uma necessidade para transformar a estrutura do mercado e reduzir os preços elevados que hoje afetam consumidores e indústrias.
No cenário internacional, os resultados do gas release são animadores. No Reino Unido, por exemplo, a política contribuiu para a redução do market share da British Gas e possibilitou a criação de um mercado spot vibrante, que aumentou a transparência e a liquidez das negociações. Na Itália, o programa ajudou a fomentar a competição entre fornecedores, reduzindo preços e expandindo a base de consumidores.
As experiências internacionais, entretanto, indicam a necessidade de um desenho robusto e bem adaptado às características específicas de cada mercado, especialmente no que se refere à integração com a infraestrutura existente, como gasodutos, terminais de GNL e unidades de processamento. É importante notar, entretanto, que este tipo de mecanismos foi adotado em conjunto com outras medidas regulatórias.
No Brasil, a implementação do gas release enfrenta desafios complexos. Um dos principais entraves é a resistência da Petrobras, que argumenta que a medida compromete a segurança energética e desestimula investimentos no setor. A empresa também levanta preocupações sobre a necessidade de respeitar contratos vigentes, muitos dos quais incluem cláusulas de take or pay e preços indexados ao petróleo.
Outro obstáculo significativo é a falta de harmonização nas regulamentações estaduais, que varia consideravelmente entre as diferentes regiões do país. Cada estado possui suas próprias regras para acesso e comercialização de gás natural, o que dificulta a formação de um mercado integrado.
Adicionalmente, a Petrobras defende que os leilões incluam preços mínimos, garantindo a recuperação de custos. Especialistas, contudo, argumentam que a ausência de preços de reserva é essencial para estimular a competição e permitir que novos agentes entrem no mercado com preços mais acessíveis.
Além disso, a infraestrutura de transporte, ainda limitada, restringe a circulação eficiente de gás natural, particularmente em áreas mais remotas. Essa combinação de fatores cria um cenário desafiador, mas não insuperável, especialmente se houver coordenação entre governos estaduais e federais, bem como entre reguladores e agentes de mercado.
Estímulo à concorrência e eficiência
O debate político também trouxe à tona divergências sobre o papel do Estado na regulação e no fomento à concorrência no setor. Enquanto alguns defendem que o gas release deve ser uma medida de transição para um mercado completamente liberalizado, outros temem que a abertura excessiva sem as salvaguardas necessárias possa levar à dependência de fornecedores externos e à vulnerabilidade do mercado interno.
No governo atual, que herdou um projeto em curso de liberalização do setor energético, as discussões refletem a busca por um modelo que concilie os interesses da indústria com os compromissos de desenvolvimento social e ambiental.
Apesar das dificuldades, as expectativas para o gas release permanecem elevadas. Consumidores livres e agentes independentes defendem que o mecanismo é crucial para reduzir a concentração de mercado, democratizar o acesso ao gás natural e fomentar a diversificação das fontes de suprimento, incluindo opções sustentáveis, como biometano e o gás natural do pré-sal.
A possibilidade de preços mais competitivos é especialmente atraente, considerando que os custos do gás natural no Brasil ainda estão significativamente acima dos preços internacionais.
A Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) desempenha um papel central nesse processo. Como reguladora do setor, a ANP é responsável por conduzir o gas release de maneira equilibrada e transparente, ouvindo as demandas de todos os agentes envolvidos.
Já foram iniciados debates públicos sobre o tema, e espera-se que a agência finalize a regulamentação definindo condições e critérios para a implementação do programa. A adoção de melhores práticas internacionais e o alinhamento às diretrizes da política energética nacional são essenciais para garantir que o gas release atenda plenamente aos seus objetivos.
Mais do que uma exigência regulatória, o gas release representa uma oportunidade estratégica para o Brasil reconfigurar seu mercado de gás natural, ampliando sua competitividade. A medida tem o potencial de impulsionar o crescimento econômico, reduzir custos para consumidores e indústrias, e estimular a inovação no setor energético.
Com uma implementação bem-sucedida, o Brasil pode não apenas superar os desafios atuais, mas também se colocar como um exemplo de transição para um mercado mais aberto e eficiente.
Este artigo expressa exclusivamente a posição do autor e não necessariamente da instituição para a qual trabalha ou está vinculado.
Alexandre Calmon é especialista em energia e sócio fundador do Costa Rodrigues Advogados (Cosro).