Sob o título de “setor elétrico”, existem diversas realidades muito distintas. Apesar de todas lidarem com energia elétrica, as atividades de geradoras, transmissoras, distribuidoras e comercializadoras (apenas para citar os segmentos mais tradicionais) revelam peculiaridades tão intensas que demarcam modelos de negócio absolutamente diferentes entre si, além de submeterem-se a regulamentações próprias e inconfundíveis.
Daí a preocupação de observar que todas essas atividades estão sendo tratadas em conjunto, sem qualquer distinção, no Projeto de Lei Complementar nº 68, responsável por regulamentar a instituição do imposto sobre bens e serviços (IBS) e a contribuição sobre bens e serviços – IBS no contexto da Reforma da Tributação do Consumo.
Não é o caso de analisar novamente o PLP nº 68. Desta vez, o objetivo deste artigo é analisar uma solução que vem sendo proposta ao Congresso Nacional para lidar com o “setor elétrico” e seu potencial de resolver uma situação concreta enfrentada por geradoras de energia.
Em síntese (e sem focar nas diferentes redações e proposições que tratam do tema), discute-se a criação de uma previsão geral de diferimento de IBS e CBS para operações com energia elétrica, de modo que os tributos seriam devidos apenas quando houvesse fornecimento de energia elétrica para consumo. Há, nessas proposições, influência das regras atualmente existentes na legislação do ICMS.
No entanto, o IBS e a CBS possuem fato gerador muito mais abrangente do que “dar saída de mercadoria do estabelecimento”. Ainda que a criação de regras de diferimento ou suspensão para esses novos tributos seja, realmente, recomendável em operações com energia, é possível que nem todas as situações particulares do setor elétrico sejam satisfatoriamente resolvidas por essa eventual previsão de diferimento.
E o exemplo que tomaremos como referência envolve os contratos de energia de reserva por disponibilidade (CER-D). Simplificadamente, o CER-D é um dos mecanismos exigido pela legislação para assegurar que o Sistema Interligado Nacional (SIN) disponha de energia elétrica em quantidade suficiente para o atendimento das necessidades de todos os usuários. Sua celebração envolve uma geradora, responsável por assegurar determinada potência em relação a uma usina para produção de energia, e a Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE), na condição de representante dos agentes consumidores.
O primeiro aspecto potencialmente problemático dessa contratação em um contexto de exigência de IBS e CBS, caso o PLP nº 68 não seja aprimorado, reside justamente no elemento “disponibilidade”. No caso, a geradora contratada deve estar à disposição para gerar energia elétrica, sendo remunerada por uma “receita fixa”, independentemente de haver efetiva geração e despacho de energia. Havendo despacho, há, ainda, uma parcela variável devida à geradora calculada com base no montante de energia gerado.
A existência de uma receita fixa para a geradora não é uma exclusividade dos CER-D, sendo observada em outros modelos de contratação. Em todos esses casos, a geradora poderá ser remunerada sem fornecer energia. Embora essa característica pudesse afastar incidência de ICMS, a situação para o IBS e a CBS é distinta. Isso porque esses novos tributos não estão limitados à “circulação jurídica de mercadorias”. O mero fato de uma geradora ser remunerada por “estar à disposição” implicará uma operação tributada pelo IBS e CBS, considerando a grande abrangência da definição de “fornecimento de bens e serviços” adotada no PLP nº 68.
Em relação à receita fixa, portanto, é possível que haja fato gerador sem que ocorra fornecimento de energia. Diante da atual redação do PLP nº 68, diversas dúvidas poderão surgir quanto ao “destino” dessa operação, dificultando a identificação do Estado e do Município competentes para definir a alíquota do IBS. Além disso, ainda que regras de suspensão ou diferimento sejam genericamente estabelecidas para “operações com energia”, há receio quanto à sua aplicabilidade.
Ora, seria possível considerar que uma geradora, ao simplesmente estar disponível, pratica uma “operação com energia”? Considerando o histórico de interpretações fiscais restritivas em matéria de tratamento diferenciado, o receio quanto a esse ponto é justificável, especialmente diante da multiplicidade de autoridades fiscais que estarão envolvidas (federais, estaduais e municipais).
Uma segunda característica do CER-D que demanda cautela envolve a contraparte da sua celebração. Como mencionado, a geradora de energia firma o contrato com a CCEE, que atua como representante dos consumidores de energia. Significa dizer que a geradora está à disposição da CCEE? Ou, no caso de haver efetivamente despacho, haveria fornecimento de energia para a CCEE? Caso a operação seja tributada (isto é, não havendo hipótese de diferimento ou suspensão), poderia alguém sustentar que a localização da CCEE ditaria o recolhimento de IBS, definindo o Estado e o Município competente. Todavia, a CCEE não é a efetiva beneficiária ou responsável pelo custeio do CER-D.
Justamente esse aspecto leva à terceira característica do CER-D a ser destacada: a forma como são obtidos os recursos para remunerar as geradoras envolvidas na contratação de energia de reserva. Foi mencionado que as geradoras contratadas são remuneradas simplesmente por estarem à disposição.
Não significa, no entanto, que permaneçam sempre ociosas, sem gerar energia elétrica. Caso gerem energia, ainda que não haja necessidade sob a perspectiva do CER-D, o montante gerado é comercializado no mercado de curto prazo (MCP), sendo liquidado em nome da própria CCEE, tomando como base o preço de liquidação de diferenças (PLD). O valor obtido nessa liquidação é, então, destinado para a Conta de Energia de Reserva (Coner).
No entanto, caso o valor obtido nessa liquidação não seja suficiente para “cobrir” a receita fixa assegurada à geradora, faz-se necessário o recolhimento do Encargo de Energia de Reserva (EER), em última análise, pago por todos os consumidores conectados ao SIN. O EER também é destinado para a Coner, congregando todos os recursos que serão utilizados para remunerar as geradoras signatárias dos CER-D.
Novamente, surge a dúvida sobre a definição dos entes competentes para definir alíquotas e exigir o IBS: a CCEE pode realizar o pagamento para a geradora de energia, mas o custeio é realizado, indiretamente, por todos os consumidores do Brasil. Importará a “localização” da CCEE ou será efetuado rateio para todos os estados e municípios, por onde estão espalhados os consumidores? Seriam esses consumidores os reais “adquirentes” e “beneficiários” da atividade da geradora envolvida no CER-D?
Para além disso, a forma de custeio das geradoras ainda gera outro problema, relacionado a uma possível “dupla” tributação. Isso porque, no caso de consumidores cativos, o EER é um dos componentes da tarifa cobrada pelas distribuidoras de energia elétrica. Em princípio, considerando as previsões do PLP nº 68, significa que o valor referente ao EER será tributado pelo IBS e pela CBS, economicamente suportados pelos consumidores. Quando tais valores são pagos à CCEE, que os destina para a Coner, haveria registro de crédito de IBS e CBS por parte da distribuidora? Afinal, a distribuidora arrecada o recurso, mas deve repassá-lo para a administração da CCEE.
Ocorre que as regras de creditamento exigem que o “fornecimento”, para gerar créditos, também deve ser tributado pelos novos tributos. Poderia alguém exigir, portanto, que a CCEE realizasse o recolhimento de IBS e CBS em relação ao EER arrecadado. Seguindo esse raciocínio, a CCEE se transformaria em um contribuinte, tratada como “fornecedora” passível de tributação.
Caso a CCEE não desempenhe esse papel de contribuinte de IBS e CBS (praticando operações tributadas e apropriando créditos), surgiria uma espécie de bis in idem: em uma ponta, a arrecadação da EER seria tributada pelas distribuidoras, enquanto, na outra ponta, as geradoras seriam tributadas em relação à sua remuneração. Não há mecanismos atualmente previstos no PLP nº 68 para que o tributo pago em uma dessas pontas pudesse ser creditado para abater o tributo apurado na outra.
Poderão alguns dizer que essa problemática já existe, em certa medida, na legislação de PIS e Cofins. Longe de tranquilizar, essa constatação apenas reforça a necessidade de que a futura legislação de IBS e CBS não reproduza equívocos do passado. Essa postura, aliás, é especialmente desejada quando se constata que as alíquotas combinadas de IBS e CBS (em teoria, referenciadas pelo patamar de 26,5%) em muito superam as alíquotas combinadas de PIS e Cofins (no máximo, 9,25% no regime não cumulativo). Ou seja, se já existe um problema hoje, negligenciar aprimoramentos no PLP nº 68 tenderia a potencializá-lo.
O objetivo deste artigo não é retratar todos os detalhes da regulamentação vigente. O que pretendemos, partindo de algumas características marcantes da contratação de energia de reserva, é evidenciar que o setor elétrico possui tantas complexidades que uma solução única, no âmbito do PLP nº 68, voltada para “operações com energia” pode não ser satisfatória. Não há dúvida de que lidar com tantas particularidades é desafiador, ainda mais quando se trata da elaboração de uma lei complementar, voltada para aplicação nacional.
Ocorre que não haverá condições de superar esse desafio enquanto ele não for reconhecido e devidamente compreendido. Felizmente, ainda há tempo para que o Congresso Nacional busque soluções no PLP nº 68 e construa uma solução satisfatória para todas as facetas e realidades do Setor Elétrico, e não apenas para a compra e venda de energia.
Diogo Olm Ferreira é sócio da área de Direito Tributário do VBSO Advogados, bacharel e mestre na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, além de especialista em Direito Tributário internacional pelo Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT).