Armazenamento

Baterias e revisão de preços: as chaves para modernizar o setor elétrico

É necessária nova abordagem setorial para a promoção de novos investimentos e aumento da confiabilidade e flexibilidade do sistema

Frederico Saliba, CEO da Raízen Power
Frederico Saliba, CEO da Raízen Power

A matriz elétrica nacional mudou de forma significativa nos últimos anos. Com mais de 22% da capacidade de geração proveniente de fontes intermitentes, como solar e eólica, se faz necessária nova abordagem setorial para a promoção de novos investimentos e aumento da confiabilidade e flexibilidade do sistema. O que exige não apenas a mudança da mentalidade de como armazenamos energia, mas também revisão estrutural nos mecanismos regulatórios que determinam os preços de liquidação (“PLD”) da energia no mercado.

E no estado da arte tecnológico de hoje, são as baterias que ganham protagonismo central, por permitirem que qualquer energia em excesso de oferta gerada em momentos de baixa demanda, possa ser armazenada e utilizada em períodos de pico de consumo.

Mercados maduros no desenvolvimento de tecnologias de armazenamento de energia mostram como esse investimento otimiza o sistema e reduz a dependência de combustíveis fósseis. É o caso de estados norte-americanos, como a Califórnia, que instalou, desde 2020, mais baterias de grande porte do que qualquer lugar no mundo, exceto a China. O excesso de energia gerada de dia é armazenado para uso à noite, em alguns casos suprindo mais de 20% da demanda, o que reduz a necessidade da construção de novas térmicas e o desperdício da energia já gerada pelo sistema.

Já o Texas, conhecido por ser o maior produtor de petróleo e gás natural dos Estados Unidos, recentemente também se tornou um dos principais líderes no processo de transição energética dos EUA. O estado é destaque na utilização de baterias para garantir não somente maior estabilidade à rede, ao mitigar variações da geração eólica e projetos solares, mas também para atrair novos usos de energia renovável como os datacenters e mineração de moedas digitais.

No Brasil, em momentos de alta geração renovável no submercado do Nordeste, já observamos o atendimento completo pelas fotovoltaicas do consumo local em  períodos diurnos. Mas infelizmente já desperdiçamos parte da geração, por ausência de armazenamento. Se o sistema fosse conectado com baterias, essa energia poderia também ser usada no horário-pico, como no início da noite.

O fato é que a revolução renovável com previsão de despacho já chegou, e agora precisamos avançar ainda mais. Essa evolução passa por adotar em larga escala as baterias de grande porte, conectadas às linhas de transmissão. Com o uso delas, seremos capazes de gerenciar a variabilidade da oferta no Brasil durante as 24 horas do dia, a chamada modulação em base semi-horária, sem o acréscimo de energia no sistema, mas sim apenas deslocando aquela já produzida. Um verdadeiro ciclo virtuoso, sem desperdício de geração e com fonte 100% renovável.

Para que isso ocorra, um ponto essencial é a correta precificação de produtos ancilares e real visualização dos custos marginais de operação do sistema. Isso significa repensar a regulação dos preços, por meio da eliminação de pisos e tetos regulatórios.

Desta forma, a flutuação livre de preços refletirá adequadamente a função custo da oferta em relação à demanda em qualquer momento do dia. Assim, a ordem de mérito de geração de energia usará os recursos que levaram o sistema total a consumir a energia ao menor custo variável de operação. Neste regime, a informação indica sinais racionais para que os agentes econômicos e operacionais sejam eficazes na tomada de decisões.

Além disso, a possibilidade de variações significativas nos preços, em momentos de alta geração renovável, inclusive ao permitir o alcance de patamares negativos, embora pareça contraintuitiva, pode viabilizar o investimento em soluções já economicamente viáveis no mundo de armazenamento em larga escala.

Ao contrário da distorção de sinais de oferta e demanda com preços regulados (os chamados pisos e tetos), que refletem uma escassez artificial e transmite uma falsa sensação de estabilidade, a flutuação livre dos preços, somada aos ganhos de eficiência e redução de custos, podem viabilizar oportunidades para a entrada da maior novidade tecnológica do século XXI, as baterias. 

E com a correta visualização de preços, retornos de investimentos poderão ser calculados para produtos de armazenagem alternativos, permitindo que vençam os agentes com a maior competitividade, seja nos futuros leilões de reserva de capacidade, que devem ser promovidos pelo governo federal, ou até mesmo na tomada de risco de mercado, ofertando produtos no mercado livre para clientes que buscam proteção contra variações de preços semi-horária.

Outro ponto relevante é que, em períodos nos quais há restrição operativa de escoamento da energia renovável, o chamado constraint of ou curtailment, a bateria traz a solução para mitigar sérios problemas de gargalo elétrico hoje enfrentados por geradores solares e eólicos.

E não somente endereçamos o uso inteligente da geração instalada no sistema, hoje sob a responsabilidade das já depreciadas hidrelétricas e térmicas. O uso de sistemas implícitos de armazenamento é relevante para a transição energética, para o crescimento de novos usos da nossa energia limpa, para o aumento da eficiência do sistema, e atração de novas formas de consumo como os relacionados a processamentos de dados computacionais ou a hidrólise. É a oportunidade para criarmos uma redundância necessária e uma opção aos recursos finitos da natureza, incluindo os combustíveis fósseis.

Ao analisar o impacto da artificialidade de piso e teto dos preços no setor elétrico, é interessante traçar um paralelo com as indústrias que prosperaram justamente por reduzir seus custos ao longo do tempo. Se a revolução dos eletrônicos tivesse sido conduzida por regulação de preços em vez de permitir sua livre flutuação, o uso das melhores tecnologias limitaria o acesso a dispositivos como smartphones e laptops, e sua inovação seria sufocada. Inclusive, esse mesmo princípio econômico vem, ao longo dos últimos tempos e em velocidade acelerada, reduzindo os custos de painéis solares e das próprias baterias.

Os números da economia dos Chips são impressionantes e remetem à lei de Moore que viabilizou os semicondutores, na qual os custos por unidade armazenada caíram 90% nos últimos 10 anos, e continuam sua trajetória de queda, sem previsão de estabilização. Vários fatores influenciam para este fenômeno em andamento, dentre eles o avanço tecnológico do uso dos materiais, o ganho de escala da sua montagem e o aumento da competição entre grandes conglomerados globais. E é exatamente isto que tem se verificado no setor de energia, quedas espetaculares de custos unitários por MW hora de armazenamento de mais de 90% em 10 anos, e previsão para queda exponencial nos próximos anos.

A transição para uma matriz energética mais flexível e sustentável exige uma organização setorial, com regras que favoreçam a adaptação e o crescimento, para que não se sufoque o dinamismo ou se iniba o progresso. Esse é o caminho para garantir que o mercado brasileiro continue a evoluir, alinhado às melhores práticas internacionais e preparado para os desafios do futuro, combinando o que é melhor para o planeta, os consumidores e todo o país, que pode ganhar em organização e competitividade.

Não podemos perder a janela do uso em massa das baterias centralizadas e conectadas ao Operador Nacional do Sistema, que potencializará o uso dos nossos recursos renováveis de forma mais eficiente e inteligente. A modernização do setor depende disso e a resultante será não somente a eficiência do que já existe, mas o crescimento econômico com aumento da demanda por energia. É o Brasil ocupando seu espaço como potência renovável no planeta.

Frederico Saliba é CEO da Raízen Power