A situação alarmante dos incêndios no Brasil em 2024 reacendeu as discussões sobre o necessário aumento de rigor nas fiscalizações dos órgãos de controle, seja para prevenir sua ocorrência ou para exigir a reparação das áreas.
Segundo dados do Programa Queimadas do Instituto de Pesquisas Especiais (INPE), o mês de setembro de 2024 teve o maior número de focos ativos de incêndio dos últimos 14 anos. Foram identificadas 83157 frentes de queimada, o que destoa dos valores verificados nos 2011 a 2023, cujos focos não superaram 72 mil (no pior ano, 2017, foram identificados 72895).
Em resposta ao cenário preocupante, agravado nos últimos anos pela necessidade de posicionamento ativo do Brasil contra o desmatamento e no enfrentamento das mudanças do clima, foram adotadas algumas medidas no aspecto normativo.
A primeira delas foi a alteração do Decreto Federal de infrações administrativas (Decreto Federal nº 6.514/08, alterado pelo Decreto 12.189/24).
Já há ao menos dois Projetos de Decreto Legislativo com a intenção de sustar a alteração normativa (PDL 353/2024 e 352/2024), ainda não votados no Congresso.
Até que haja alteração do centro, as modificações permanecem, dentre as quais a possibilidade de embargo de conjunto de poligonais, o que faz sentido diante de grandes propriedades cujas infrações não ocorram em áreas contíguas.
Além disso, foram acrescentados diversos tipos infracionais novos, com destaque para a conduta de deixar de implementar ações de prevenção e de combate aos incêndios florestais em propriedade rural. A infração é aplicável contra o proprietário rural com multa entre 5 mil e 10 milhões de reais.
O grande problema é que não há uma listagem taxativa de quais medidas são obrigatórias, devendo ser avaliado o caso concreto, a depender do tamanho, da localização e da destinação da propriedade rural. Ou seja, na prática, mesmo diante de incêndios criminosos, o proprietário poderá ser autuado caso não comprove a adoção das medidas necessárias para combate e prevenção ao incêndio.
Outro dispositivo importante versou sobre a aplicação de sanção contra pessoas físicas e jurídicas que não adotarem medidas de reparação, compensação ou indenização por dano ambiental.
Essa conduta, em si, não era prevista como passível de responsabilização administrativa, era tratada apenas no âmbito as infrações, como no caso de descumprimento de condicionantes de licença, por exemplo. Eventual reparação, seguia-se no órgão ambiental como desdobramento das sanções, como forma de regularização. Respectiva responsabilização pela sua não realização ocorre em âmbito civil, pelos entes competentes, incluindo o Ministério Público.
E aí as esferas civil e administrativa podem se confundir e causar deformações no sistema de responsabilidade ambiental.
Essa confusão fica ainda mais latente com a recente publicação da Instrução Normativa nº 02/2024 que visa regulamentar o processo administrativo de reparação por danos ambientais, diante da aplicação de sanções pelo IBAMA.
Isto porque, é previsto na IN que o processo administrativo da reparação por danos ambientais deve seguir rito próprio, com etapas de caracterização de dano, indicação de soluções cabíveis, aprovação de projeto e monitoramento. Há previsão, inclusive, sobre a tramitação no IBAMA de processos cuja autuação seja realizada pelos demais entes (estados e Municípios).
Contudo, segundo entendimento já pacificado no STJ e no próprio IBAMA, sabe-se se a lógica da responsabilidade civil (reparação) é distinta da administrativa (sancionatória), inclusive quantos aos critérios para condenação.
Essa tramitação poderá causar alguns problemas práticos, tais como:
- após a autuação, o IBAMA encaminha cópia do auto de infração para o Ministério Público, que instaura processo de apuração de responsabilidade civil. Nesse caso, o autuado poderá ter que responder em duas esferas, sobre mesmo assunto, simultaneamente;
- há previsão na IN que “nos casos inequívocos de autoria e materialidade”, o administrado será imediatamente notificado para adoção imediata das medidas cabíveis para a reparação pelo dano ambiental. Ocorre que em se tratando de direito administrativo sancionador, não há que se falar de caso inequívoco, considerando o direito ao devido processo legal e contraditório. Isto é, há risco do IBAMA instaurar imediato processo de reparação, o que será ilegal e poderá ser questionado;
- não há previsão de como ocorrerá o processo de reparação nos casos em que não houver elemento subjetivo (dolo ou culpa). Ou seja, o arquivamento do processo de sanção também ocasionará o encerramento do procedimento de reparação perante o IBAMA? A dúvida é pertinente inclusive considerando que, na esfera civil, não há apuração de dolo ou culpa.
Todas essas provocações inicias são necessárias e deverão ser aprimoradas pelo IBAMA na aplicação das novas regras, inclusive para evitar que, na tentativa de tratar a causa dos danos ambientais, gere novas burocracias e procedimentos, que não favorecerá a Administração Pública, tampouco o administrativo e, menos ainda, o meio ambiente.
Luciana Gil e Patricia Mendanha Dias são sócias do Bichara Advogados