Os países do G20 se comprometeram a destinar ao menos US$ 267 bilhões a políticas energéticas desde o começo da pandemia do novo coronavírus. Desse montante, a maior parte foi direcionado para apoiar a indústria dos combustíveis fósseis, no valor total de US$ 150,8 bilhões. O volume é mais do que o dobro dos US$ 88,6 bilhões que o grupo das maiores economias do mundo está direcionando para apoiar iniciativas que envolvem o fomento a energias limpas.
Os números são parte de um estudo inédito divulgado esta semana por 14 organizações de diferentes países, sob a coordenação do centro de pesquisa canadense International Institute for Sustainable Development (IISD). Os dados compilados foram disponibilizados na plataforma Energy Policy Tracker, destinado a monitorar as propostas dos governos do G20 para o setor de energia diante da crise da covid-19.
A iniciativa é apresentada como uma espécie de termômetro para acompanhar as decisões sobre políticas energéticas e monitorar se serão ou não mais aderentes às diretrizes de sustentabilidade a partir da crise atual pelo menos ao longo dos próximos dez anos.
As políticas públicas listadas a partir de dados oficias são classificadas pela plataforma como “limpas”, “fósseis” e “outras”, esta última para englobar iniciativas que possuem forte impacto socioambiental, apesar de não estarem relacionadas à cadeia de óleo, gás ou carvão.
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Brasil destinou 20% dos recursos para renováveis
Um balanço comparativo dos recursos destinados ao setor de energia em cada país coloca o Brasil em nono lugar entre os que direcionaram os maiores valores ao setor. De acordo com os dados coletados, o país destinou US$ 3,4 bilhões a políticas do setor de energia desde o começo do ano, sendo US$ 770 milhões para renováveis.
Ao todo, o levantamento feito no Brasil pelo Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) identificou 27 propostas de políticas energéticas praticadas neste ano. Dez delas foram classificadas como direcionadas para combustíveis fósseis e apenas sete envolvem energias limpas. Outras dez iniciativas foram avaliadas como “outras”.
A epbr entrevistou Livi Gerbase, assessora do Inesc. Ela afirma que globalmente a recuperação econômica após a crise causada pela pandemia deve ser orientada, ao menos em parte, por condicionantes de redução de impacto ambiental. Mas lamenta que o governo brasileiro permaneça com a atenção centrada no setor de óleo e gás ainda não foi capaz de direcionar sua política energética a mecanismos que exijam contrapartidas como a redução de emissões.
Na íntegra, a entrevista com Livi Gerbase
Em termos de volume de recursos, o Energy Policy Tracker mostra o Brasil na nona posição entre as economias do G20. O que falta para o país avançar?
O site não foi criado como um ranking entre países. A ideia é avaliar se o que está sendo privilegiado com recursos dos governos é destinado à produção de energia limpa ou energia fóssil. Mas ali se vê que em termos do tamanho do pacote de ajuda para o setor energético, o Brasil está aquém de outros países.
Mas se virmos para onde está indo esse recurso, vemos que o Brasil tem proporcionalmente mais recursos limpos do que o primeiro lugar, que é os Estados Unidos.
A gente teve algumas políticas fósseis importantes, como a ajuda o setor aéreo, que não foram aprovadas no Brasil, então não entra no Energy Policy Tracker.
O monitoramento será feito após a superação da pandemia?
O site vai ser atualizado semanalmente e vai continuar enquanto durar a pandemia. As políticas incluídas ali são todas iniciativas tomadas neste ano, a partir de primeiro de janeiro de 2020.
A data final planejada é 2030, então o Energy Policy Tracker acompanha o que serão os desdobramentos da pandemia. A proposta é acompanhar se essas promessas de recuperação colocadas pelos governos estão acontecendo de fato.
Mas há casos de políticas que não são especificamente ligadas à pandemia de covid-19. Tivemos neste ano a crise do petróleo. Então, no caso do Brasil, a nossa política de biocombustíveis incluída lá aconteceu porque os preços caíram tanto que o setor de biocombustíveis deixou de ser competitivo e precisou de ajuda governamental.
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A recuperação econômica da crise de 2008 mostrou um aumento de emissões. O que devemos esperar no Brasil quanto ao futuro após a crise causada pela covid-19?
O Brasil tem uma estrutura muito grande de apoio ao setor de combustíveis fósseis. Há incentivos fiscais, políticas energéticas da Petrobras. Parece que esse foco vai permanecer no setor de energia no país. Mas gostaríamos que houvesse uma revisão dessa postura.
Com a descoberta do pré-sal, houve um aumento do foco no setor petrolífero. Mas agora é preciso olhar para isso e repensar se faz sentido para os próximos anos. Se ainda faz sentido continuar dando apoio ao setor no Brasil. Eu acredito que não.
Mas ao mesmo tempo, precisamos nos perguntar quais são os impactos socioambientais da energia limpa. A gente tem exemplos claros no Brasil de impactos de grandes dimensões causados por grandes projetos de hidrelétricas, que ocupam lugar central na nossa matriz energética.
Globalmente há a perspectiva de uma recuperação mais centrada em energia limpa?
Sim, o contexto mudou de 2008 pra cá. Existem hoje as políticas fósseis condicionadas, com apoio governamental condicionado a algum tipo de resposta. No caso das companhias aéreas, por exemplo, se buscam mudanças, redução de emissões de gases de efeito estufa.
Isso já aparece em várias políticas que o Energy Policy Tracker está mapeando em outros países e mostra uma importante mudança no pensamento dos gestores públicos nessa década. Mas, ao meso tempo, os dados mostram um limite para esse discurso.
Percebe-se que há um apoio aos combustíveis fósseis maior do que à energia limpa.
Nenhuma iniciativa desse tipo foi identificada no Brasil?
No Brasil a gente não identificou nenhuma política fóssil condicionada. Mas aqui o apoio para o setor aéreo não foi definido ainda.
Até agora, estamos começando a ver a Lei do Gás andar no Congresso e vamos ver como vai se desenvolver.
Mas o que vimos mais próximo disso foi uma política para maior eficiência na queima de gás no Brasil. Mas políticas fósseis condicionadas não são um modelo de política que o Estado brasileiro esteja pensando, não entrou no radar.
A proposta de incentivar o mercado de emissão de debêntures verdes não parece algo definido dentro do governo, que dá sinais trocados sobre o tema da precificação dos CBIOs.
Certamente ainda há limites para o mercado de carbono no Brasil, mas publicamos a política dos CBIOs [no Energy Policy Tracker] como uma medida positiva porque vemos como um passo. É positivo existir o comercio de CBIOs para que possamos ter um mercado cada vez maior de financiamento verde.
O que vocês classificam como “outras políticas”?
São aqueles casos em que não é tão fácil classificar uma iniciativa como política energética limpa ou não. Incentivos a energia nuclear, por exemplo, entram nessa categoria. No caso brasileiro, a facilitação do licenciamento para minerais estratégicos também entrou como “outros”. Nesses casos, entendemos que há um lado positivo, mas os impactos ambientais são muito grandes.
E como classificariam políticas para biocombustíveis?
A mesma coisa acontece nos biocombustíveis. A principal política do governo brasileiro direcionada para o setor de energia em termos financeiros neste ano foi a ajuda ao setor sucroalcooleiro, com recursos altos do BNDES. Mas na análise dessa iniciativa é preciso levar em conta que esse é um incentivo ao aumento do espaço para a monocultura.
Outro ponto importante aqui foi a ajuda ao setor elétrico. No Brasil esses recursos também entraram na categoria “outros”. Toda a ajuda às distribuidoras de energia elétrica, e a questão da tarifa social.
Por conta do impacto socioambiental da produção de energia, a partir de hidrelétricas?
Isso, exatamente, por conta da visão mais ampla dos impactos socioambientais causados por essas instalações.
Como são encaradas as promessas do governo brasileiro de retomar o projeto nuclear de Angra 3 e construir novas nucleares?
Essa é outra área em que há esses dois lados. Em termos econômicos existem alternativas mais baratas e mais limpas do que a nuclear para o Brasil. O país tem um potencial enorme que ainda não é bem aproveitado para a geração de energia solar e eólica, mas tudo isso fica de lado quando a gente pensa no tamanho dos investimentos que vão ser destinados para a conclusão da usina de Angra 3.
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O Inesc afirma que o Brasil destinou R$ 85 bilhões ao setor de combustíveis fósseis em 2018. É majoritariamente o Repetro?
Exatamente. Não existe cálculo oficial sobre volumes financeiros envolvidos nessa política de subsídios no Brasil. Lá fora, o IISD é propagador de uma metodologia específica para o cálculo de subsidio a combustíveis fósseis, foi com ela que elaboramos esse cálculo no Inesc e a partir daí fomos convidados a integrar o grupo que elaborou o Energy Policy Tracker.
Divulgamos os dados referentes ao Repetro em 2018, mas ainda não os referentes ao impacto dessa política no ano de 2019. Vamos divulgar e a expectativa é que eles mostrem um aumento nesse valor de incentivos aos combustíveis fósseis. Isso porque o Repetro se mantém. Ele ia acabar em 2020, mas foi prorrogado para mais 20 anos.
A “MP do Trilhão” é muito importante e o maior dos incentivos, mas há uma série de incentivos que estarão no nosso estudo. Por isso quando olhamos para o Energy Policy Tracker temos que ter esse olhar mais amplo de que existe uma estrutura de décadas de incentivos a combustíveis fósseis no Brasil.
Pensar uma recuperação verde é repensar essa estrutura que temos de apoio aos diferentes setores da energia no Brasil.
E quais os maiores obstáculos para o Brasil alterar as prioridades de suas políticas para o setor?
Temos uma grande dificuldade para fazer chegar essa mensagem à população. Mas também há grandes entraves de transparência que dificultam entender a dimensão desse apoio aos combustíveis fósseis no país. Como falei, não há dados oficiais sobre o impacto desses recursos.
Além disso, existe um lobby muito grande no governo e no Congresso para manter esses privilégios e manter essa estrutura de apoio como está. E como alguns estados e municípios são muito dependentes da produção de fósseis, há uma limitação para que eles possam apoiar uma recuperação verde que impactaria em reduzir os royalties.
O setor de biocombustíveis tem suas questões, mas é uma alternativa renovável. E ele realmente perdeu espaço nos últimos anos. Agora, com a pandemia, o governo direcionou um apoio grande para esse setor que até nos impressionou. Mas ainda falta muito para esse olhar centrado no pré-sal ser substituído para um olhara aberto para outras energias.
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