De volta para o futuro: a indústria de O&G revive 1990. Ou seria 2050?

Obras IERN. Refinaria do Planalto - REPLAN. Paulínia (SP). 14.02.2012. Foto: Marcos Peron/virtualphoto.net
Obras IERN. Refinaria do Planalto - REPLAN. Paulínia (SP). 14.02.2012. Foto: Marcos Peron/virtualphoto.net

A crise sem precedentes que abalou o mundo por conta da pandemia da Covid-19 nos fez experimentar abruptamente uma demanda por gasolina e etanol que equivale a da década de 1990. O consumo de querosene de aviação (QAV) foi ainda mais impressionante, nos remetendo ao início da aviação comercial, no século XX.

O gás de cozinha (GLP), na contramão, teve consumo aumentado em meio à crise sanitária, causando um desequilíbrio nunca antes vivenciado pelos refinadores de petróleo. Interessante é que o caos observado nos remete também ao futuro, onde a dinâmica social possivelmente exigirá menos combustíveis, assim como colocará gasolina e etanol cada vez mais em disputa por espaço no mercado. A indústria de óleo e gás está experimentando do dia para noite como será o futuro que a espera.

De volta a década de 1990

Abril de 2020 ficará marcado na história como o mês em que a demanda por gasolina e etanol no país chegou a reduzir impressionantes 40%, em dado momento, segundo dados da Agência Nacional do Petróleo. Os volumes comercializados no momento mais agudo equivalem aos do início dos anos 90. É interessante lembrar do passado para ver como o presente é reflexo dele.

Após as crises do petróleo nos anos de 1970, que elevou os preços da commodity às alturas, tivemos a criação do programa Pró-Álcool. Em poucos anos, o etanol superou o consumo de gasolina no Brasil, em um esforço monumental para viabilizar tal feito, em termos de engenharia automobilística, do agronegócio, criação de infraestrutura de abastecimento e mobilização política para a criação de incentivos fiscais e financeiros ao setor.

Alguns saudosos, ou não, talvez ainda lembrem do pequeno Fiat 147, o primeiro modelo fabricado em território nacional a utilizar exclusivamente álcool em larga escala. O etanol ia bem, obrigado, até que vieram os anos 90.

O contrachoque do petróleo na década de 1980, barateou o óleo a preços que deixaram o biocombustível em dificuldade frente a gasolina. Soma-se a isso o fato de que muitos produtores de etanol podiam reverter grande parte da sua capacidade fabril para produção de açúcar quando tal opção fosse mais atrativa. Os carros movidos a etanol contavam também com a reclamação de parte dos consumidores, especialmente dos Estados do Sul, onde as temperaturas mais baixas durante metade do ano causam dificuldade de ignição ao biocombustível. Os astros se alinharam e, assim, o etanol perdeu força e o consumo de gasolina voltou a crescer.

Nos anos mais recentes, o advento dos veículos flex, combinado com altos preços do petróleo, devolveu a importância ao etanol, que passou a crescer fortemente mais uma vez. A produção de anidro e hidratado somados se mantiveram acima do volume de gasolina produzida nas refinarias de 2015 a 2019. Este ciclo está ameaçado com a chegada da pandemia, quando os preços do petróleo despencaram, arrastando consigo a demanda por combustíveis.

O consumo, que ainda segue debilitado, já faz com que 2020 seja um ano pior do que 2019. Mesmo que o ponto mais crítico já tenha passado, a expectativa é que os preços se mantenham em baixa, com uma recuperação que depende da dinâmica de combate ao coronavírus, bem como da sempre presente geopolítica do petróleo. Com preços mais baixos, velhos óbices reaparecem.

Flashback

A atual crise de demanda trouxe à tona um antigo problema, a falta de competitividade do etanol frente a gasolina em ocasiões de baixos preços do petróleo. Mesmo contando com uma grande vantagem tributária (ver quadro 1), o combustível de cana-de-açúcar não consegue competir com a gasolina enquanto o barril de petróleo for cotado abaixo dos 30-35 dólares. O problema se concentra no etanol hidratado, já que o custo do anidro misturado à gasolina é integralmente repassado ao consumidor final independentemente do valor de saída das usinas.

Os produtores de etanol hidratado pedem socorro, solicitam ao Governo isenção de PIS/Cofins e aumento da CIDE na gasolina, ou seja, querem uma vantagem ainda maior do que eles já têm para sobreviver a esta crise. A Petrobrás, principal produtora de gasolina no país, rebateu ao pedido de socorro, alegando que uma maior vantagem ao etanol reduzirá ainda mais o consumo de gasolina, que, no atual cenário, coloca em risco o abastecimento de gás de cozinha.

A alegação da estatal tem fundamento, pois gasolina e GLP são produzidos na mesma etapa de processo nas refinarias, sendo que a redução da produção de um reduz proporcionalmente a do outro, ao passo que a importação de GLP enfrenta gargalos. Como resolver a equação? Onerando alguém.

Zerar ou reduzir Pis/Cofins em um momento de queda da arrecadação é uma renúncia muito difícil. Para satisfazer o setor sucroalcooleiro e a Petrobrás, está na pauta, junto com a elevação da CIDE, a imposição de uma taxa de importação para a gasolina, o que deslocaria a fração importada em prol da produzida internamente. Os importadores de combustíveis reclamam da medida. A discórdia está estabelecida.

Uma interferência do Governo no setor mexe no principal pilar econômico até então defendido, a do liberalismo, além de afugentar os investimentos privados em infraestrutura de importação e escoamento de derivados. Se não intervir, por outro lado, o Governo vai assistir ao fechamento de diversas usinas de etanol hidratado, em especial, cujo desemprego vem a rebote com o dos demais setores fragilizados pela pandemia.

Qualquer que seja a escolha, o consumidor final é quem pagará a conta tanto da interferência quanto da provável quebradeira dos produtores de etanol. É preciso salvar o setor de etanol, bem como preservar os demais agentes da cadeia de combustíveis. Não há caminho fácil, a ajuda, se vier ou não, desagradará a algum dos envolvidos.

Por falar em ajuda…

Outro segmento que passa por momento crítico é o de aviação. O isolamento social imputado pela pandemia deixou muitas aeronaves no chão e fez o consumo de QAV diminuir para mais de 80% entre março e abril deste ano. Mesmo que a pandemia arrefeça, não se sabe ainda como as pessoas reagirão ao novo tempo que se apresenta.

A população se sentirá segura para viajar a turismo nos próximos meses dentro ou fora do Brasil? Como ficará a aviação comercial no pós-pandemia? Arrisco dizer que as pessoas viajarão menos de avião, por conta da crise econômica, do receio de infecção viral e pela mudança de comportamento dos voos executivos. O Governo Federal, via ANAC, conversa com as empresas de aviação para mantê-las operando. Qualquer ajuda, que será necessária, contará também com o bolso do contribuinte, ainda que indiretamente.

…de volta para o futuro

A transição energética em algum momento irá impor uma crise de demanda aos combustíveis, principalmente aos fósseis. Estamos assistindo hoje alguns capítulos, spoilers, do que se vislumbra que ocorrerá por meados de 2050. Claro que a transição será mais lenta, mas a atual experiência deixa lições e reflexões profundas. Eficiência energética, carros elétricos, biocombustíveis, transformação digital, mudanças de hábitos, entre outros, são alguns dos principais fomentadores da alteração social e energética que está em curso e que afetará o setor de petróleo. A crise de hoje será a de amanhã.

A transição já é marcada pelos conflitos. O exemplo mais recente disso no país é o Renovabio, programa que atua em benefício do renovável ante ao fóssil. A sobreoferta de petróleo e gás reduz o preço dos combustíveis fósseis, enquanto os créditos de carbono majoram. Carros elétricos deslocam o consumo de etanol e gasolina e, embora ainda não sejam significativos no Brasil, devem manter tendência de crescimento a longo prazo. O ambiente digital, por sua vez, vai mudando a forma como consumimos os recursos naturais, nos locomovemos, trabalhamos e demandará menos combustíveis no futuro, um contraponto à expansão do consumo deles.

O equilíbrio será assimétrico entre a oferta e a demanda por determinados derivados, como assistimos hoje em relação ao gás de cozinha e a gasolina. Como vamos manter a produção de GLP num ambiente futuro em que o consumo de gasolina reduz, por exemplo? Os esquemas de refino de petróleo precisam ser alterados, mas a tempo e custos desconhecidos, num ambiente de alta volatilidade e retornos incertos.

Ainda não é possível saber se no futuro teremos carros-voadores (embora já tenhamos os drones) ou motores a fusão nuclear, algo que faz parte do imaginário das pessoas há bastante tempo. A certeza é de que nós seguiremos demandando energia, mas de formas diferentes das que temos hoje. A crise experimentada agora nos remete aos volumes consumidos no passado, mas também nos dá amostras do futuro. Passado, presente e futuro vivenciados num mesmo lapso tempo, algo que nem Einstein esperava. É o déjà-vu da indústria de energia.

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