Por Luís Fernando Priolli e Cid Tomanik Pompeu Filho (*)
Há três décadas, o parágrafo 2º do artigo 25 da Constituição Federal (CF) vem sendo interpretado no sentido de que caberia aos Estados-membros: legislar, fiscalizar, regular e explorar (diretamente ou, com exclusividade, os serviços locais de distribuição de gás canalizado, podendo, para tanto, explorar a atividade econômica de comercialização de gás natural.
Assim, o referido parágrafo foi considerado com eficácia plena e autoaplicável. Em cima dessa interpretação se desenvolveu o mercado de gás no Brasil. Estamos vivendo um verdadeiro mercado de faz de conta…
A Constituição Federal de 1988 foi promulgada tendo em seu artigo 25, § 2º, a seguinte previsão constitucional:
Art. 25. Os Estados organizam-se e regem-se pelas Constituições e leis que adotarem, observados os princípios desta Constituição.
(…) § 2º Cabe aos Estados explorar diretamente, ou mediante concessão, a empresa estatal, com exclusividade de distribuição, os serviços locais de gás canalizado.
Em 15 de agosto de 1995, a Emenda Constitucional 5 alterava o parágrafo 2º do artigo 25 da Constituição Federal, retirando do texto constitucional a exclusividade de empresa estadual na exploração da distribuição de gás canalizado, passando a vigorar com a seguinte redação:
(…) §2º Cabe aos Estados explorar diretamente, ou mediante concessão, os serviços locais de gás canalizado, na forma da lei, vedada a edição de medida provisória para a sua regulamentação.
As modificações foram de tal ordem que merecem ser analisadas em partes para que possa ser plenamente entendida a sua profundidade.
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“Gás canalizado”
Durante três décadas, essa expressão vem sendo empregada milhares de vezes em leis, decretos, portarias, resoluções etc., sem que houvesse a preocupação com o significado da expressão “gás canalizado”.
Algumas pessoas têm ideia do significado dessa expressão, mas a grande maioria associa esta à distribuição de gás natural. O que é um grande equívoco.
Segundo Gustavo Mano: “As atividades econômicas relacionadas com a infraestrutura possuem algumas especificidades técnicas e econômicas que as caracterizam como “indústrias de rede”, isto é, são compostas por estruturas físicas que se conectam para possibilitar a operação. Tais indústrias podem ser consideradas serviços de interesse público, quando proporcionam bem-estar social e são complementares a alguns serviços públicos básicos indispensáveis para a economia, como eletricidade, telecomunicações, água e esgoto sanitário.”[1]
O termo “gás”, descrito no parágrafo acima, é muito abrangente e não foi delimitado pelo legislador constituinte. Portanto, tal termo pode compreender todo e qualquer produto químico no estado gasoso.
O conceito de “gás canalizado” poderia fazer alusão ao gás natural, ou a qualquer hidrocarboneto gasoso ou a qualquer material que não esteja sob estado líquido ou sólido.
Nesse sentido, os Estados-membros simplesmente abraçaram que gás canalizado seja sinônimo de distribuição de gás natural, com exceção do Estado do Rio de Janeiro, que estabelece que a concessionária local ficasse autorizada a distribuir, através de canalização, o gás natural e gás liquefeito de petróleo (GLP).
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“A empresa estatal”
A exclusão dessa expressão propiciou que tal atividade pudesse ser explorada pela iniciativa privada, tendo em vista a necessidade de vultosos investimentos no setor.
“Com exclusividade de distribuição”
Com a eliminação da exclusividade abriu a possibilidade de haver competição no setor e não mais monopólio da atividade de distribuição de gás canalizado.
“Mediante concessão”
Como ocorre com o setor elétrico, esta propicia que os Estados-membros se utilizem de concessão para a exploração te tais serviços, Lei nº 8.987, de 13 de fevereiro de 1995.
“Na forma da lei”
O termo “na forma da lei” aparece oitenta vezes na Constituição Federal, e mais trinta e cinco vezes como “nos termos da lei”.
O legislador, ao incluir tais expressões no texto constitucional, tinha plena consciência da consequência. Na expressão “na forma da lei”, o legislador tornou o dispositivo em norma de eficácia limitada, não sendo autoaplicável. As normas constitucionais que tenham tal expressão ficam com sua aplicabilidade condicionada à lei complementar.
Na lição de Michel Temer, em sua obra Elementos de Direito Constitucional “… eficácia se verifica na hipótese de a norma vigente, isto é, com potencialidade para regular determinadas relações, ser efetivamente aplicada a casos concretos.”[2]
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“Vedada a edição de medida provisória para a sua regulamentação”
Ao incluir tal expressão, o legislador constituinte teve a intenção de suprimir do Presidente da República a possibilidade de regulamentar o preceito constitucional.
Esse ponto foi amplamente debatido nos anais dos debates ocorridos, quando da tramitação do Projeto de Emenda Constitucional nº 4/1995, no Congresso, que se transformou na Emenda Constitucional nº 5, de 1995.
O inciso III do § 1º do Art. 62 estabelece que, em caso de relevância e urgência, o Presidente da República poderá adotar medidas provisórias, com força de lei, devendo submetê-las de imediato ao Congresso Nacional, mas é vedada a edição de medidas provisórias sobre matéria reservada à lei complementar.
Lei! Ora, a lei…
A segurança jurídica é condição sine quo non para o desenvolvimento e crescimento do mercado do gás natural. Não é admissível que um texto constitucional seja interpretado a bel-prazer, desconsiderando a hermenêutica jurídica para a compreensão legal do referido parágrafo.
Por ser uma competência federal, há necessidade de lei que regulamente o tema distribuição de gás canalizado. Com isso, evitar-se-á o “mendiguismo”, como por exemplo, o inciso VII do Art. 2º da Resolução CNPE nº 16, de 24 de junho de 2019, na qual o Conselho orienta que a transição para o mercado concorrencial de gás natural deverá ocorrer de forma coordenada, de modo a “incentivar a adoção voluntária, pelos Estados e o Distrito Federal, de boas práticas regulatórias relacionadas à prestação dos serviços locais de gás canalizado, que contribuam para a efetiva liberalização do mercado, o aumento da transparência e da eficiência, e a precificação adequada no fornecimento de gás natural por segmento de usuários.”
Pelo exposto, o preceito constitucional do § 2º do Artigo 25 é muito claro, no sentido de que é imprescindível que exista Lei Federal que regule os serviços locais de gás canalizado em todo o território nacional.
Como também, fica patente que compete aos Estados-membros, diretamente ou mediante concessão, explorarem os serviços locais de gás canalizado.
O conceito exposto no início deste artigo não se sustenta, em virtude da ausência de lei federal que regule a atividade de distribuição de gás canalizado.
Por fim, devemos ter em mente o princípio da legalidade na administração pública, que estabelece que na administração pública somente é permitido fazer o que a lei autoriza.
[1] MANO, Gustavo. Distribuição de Gás Canalizado [Seção do Livro] Gás Natural no Cenário Brasileiro / A. do livro Costa Maria D’Assunção. Rio de Janeiro: Synergia Editora, 2015, p. 129.
[2] TEMER, Michel. Elementos do direito constitucional. 14ª Ed. revista e ampliada, Malheiros, 1998,
p. 23.
Luís Fernando Priolli e Cid Tomanik Pompeu Filho são consultores em assuntos jurídicos e regulatórios nos segmentos de gás natural e de distribuição de gás canalizado.
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