Quando se discute privatização versus estatização, sempre se coloca a questão como um conflito: Bom para o setor privado, mas ruim para o país. Bom para as contas do governo, mas ruim para o controle econômico do setor. Bom para o consumidor quando há subsídios, ruim quando há monopólio. Afinal, seria a venda das refinarias da Petrobras uma medida tão antagônica? Seria um perde-ganha? Seria, de fato, uma perda para o governo? Qual seria o impacto para o consumidor? E para o acionista?
Petrobras estatal? Nem tanto
Antes de falar das refinarias em si, há que se lembrar que a Petrobras não é 100% estatal. A Petrobras é uma empresa mista onde entidades governamentais diversas detém aproximadamente 47% do capital total. A União Federal controla sozinha com 50,3% do capital votante. No lado dos credores, o alto endividamento da Petrobras fez os juros desembolsados atingirem R$ 20,6 bilhões ao final do terceiro trimestre de 2018, enquanto que o fluxo de caixa livre foi de R$ 37,5 bilhões. Portanto, os credores recebem mais da metade do que sobra para os acionistas.
Resumindo, já há muito interesse privado na Petrobras. Acionistas e credores desejam a saúde econômico-financeira da empresa com o objetivo de aumentar seus ganhos ou reduzir seus riscos. Como detentores de ações da Petrobras, eles estão alinhados aos interesses da empresa e do próprio governo no papel de acionista. Se a venda de ativos é boa para a Petrobras será boa para eles. Já o governo tem algumas contradições.
Quando um governo confunde os papéis
No entanto, governos costumam atuar na Petrobras, internamente, com objetivos mais amplos do que seu papel de acionista. É legítima a atuação do governo como regulador econômico do setor de óleo e gás, por meio de política pública direta. Não obstante, não é legítimo atuar de forma pouco transparente utilizando o controle que detém sobre a empresa.
A interferência do governo começa a ser danosa quando decide fazer política pública às custas dos acionistas que confiaram seus recursos à Petrobras ou outras empresas estatais. O caso de maior impacto foi exatamente no mercado de derivados. De 2010 a 2014, a Petrobras passou por um período de controle de preços informal pelo governo para reduzir artificialmente a inflação. Estimativas de especialistas apontam que a Petrobras perdeu de margem no mercado de derivados em aproximadamente US$ 50 bilhões quando comparado com os preços internacionais do período. Isto significa aproximadamente R$ 190 bilhões ao câmbio atual. Esses valores representam por volta de metade da dívida atual da Petrobras! Também representam mais de 20 vezes a estimativa de propina da lava-jato registrada em suas demonstrações financeiras!
E quem se beneficiou foi a classe média! Apenas a título de comparação, a linha 4 do metrô do Rio, que levou esta modalidade de transporte aos bairros nobres de Ipanema e Barra da Tijuca, custou cerca de R$ 10 bilhões. Com as perdas da Petrobras, poderiam ter sido construídas aproximadamente 20 linhas de metrô equivalentes nas capitais brasileiras! Curiosamente, foi um partido de esquerda que promoveu este socialmente injusto fenômeno.
Seria o mercado de refino atrativo para empresas privadas? E para a própria Petrobras?
Que investidor apostaria em um mercado com histórico de subsídios a partir de uma empresa sob controle estatal proprietária de 98% do refino? Esta mesma empresa detém 80% da produção de petróleo do país. Nada atrativo, não é mesmo? Embora o Brasil seja um grande mercado consumidor e teoricamente aberto, a concentração horizontal e vertical dos negócios da Petrobras confere a esta um poder de mercado que faria qualquer concorrente desistir do investimento.
Na perspectiva da Petrobras, investir em refino em cenário de controle de preços, como aconteceu no passado (desprezadas as motivações escusas descobertas pela operação lava-jato) certamente não seria o melhor negócio, mesmo que houvesse margens positivas. Ocorreu apenas por pressão do governo anterior e os resultados foram terríveis, com dezenas de bilhões de dólares gastos em refinarias inacabadas como o COMPERJ e RNEST.
A Petrobras tem um portfólio de oportunidades no pré-sal com rentabilidade muito superior aos projetos de refino. Dado que o mercado de capitais tem recursos finitos, a Petrobras deveria escolher onde investir e que projetos postergar. O refino seria interessante apenas após se atingir a maturidade nos investimentos do pré-sal. Porém, a Petrobras tentou fazer tudo ao mesmo tempo, se tornou a mais endividada empresa de petróleo do planeta e a realidade falou mais alto. Linhas de financiamento se esgotaram e os juros subiram. Depois de estrangulada financeiramente, não houve escolha. Investimento em refino foi paralisado. A venda de parte de seus ativos se apresentou como uma indispensável fonte de recursos para desenvolver os melhores projetos de seu portfólio e assim permitir o refinanciamento e alongamento da dívida.
Os astros se alinham
A Petrobras anunciou em 2018 a abertura do processo de venda parcial de quatro refinarias. Um pacote batizado de Pólo Sul com as refinarias REFAP e REPAR e outro pacote chamado de Pólo Nordeste com a RNEST e a RLAM. Em ambos os casos, a Petrobras criaria um subsidiária e venderia 60%, entregando o controle, mas mantendo presença nas companhias como acionista minoritário. Provavelmente, com alguns direitos de aprovar os investimentos e evitar canibalização de seus outros mercados como o Sudeste. O processo foi interrompido por liminar judicial, mas já foi reestabelecido no início deste ano.
Adicionalmente, após o início do governo Bolsonaro, uma gestão que vem com um discurso liberal nunca experimentado pelo Brasil, o CADE (Conselho Administrativo de Defesa Econômica) finalmente teve liberdade para atuar como órgão de defesa da concorrência no setor petróleo. Após vários anos de práticas prejudiciais aos concorrentes pela Petrobras, o CADE manifestou que esta deveria não só vender integralmente os tais ativos anunciados, mas também alienar alguns ativos do “monopólio” regional remanescente do Sudeste, região de maior atividade econômica do país.
O CADE identificou que o parque de refino do Sudeste, notamente as refinarias de São Paulo, compõem um conjunto de refinarias que tem a maior integração e capacidade de alcançar o mercado de outras regiões. O que a gestão anterior da Petrobras propôs no processo de venda das refinarias se assemelha a um cartel de mercados regionais. A Petrobras mantém o controle do mercado do Sudeste e cede os mercados do Sul e Nordeste para um parceiro.
Embora a Petrobras no passado não tenha exercido esse controle de mercado a seu favor, hoje ela atua praticando preços de paridade de importação, calculando a fatia de mercado que irá abrir mão para importadores, de forma a rodar as refinarias com margem otimizada e fator de utilização mais baixo, isto é, as refinarias trabalham com mais capacidade ociosa, mas não produzem produtos de baixo valor comercial e sem demanda relevante no mercado brasileiro, como óleo combustível. Isso ocorre porque acima de um determinado nível de produção, a quantidade produzida de derivados leves e de maior valor, como gasolina e diesel, é inferior a produção de produtos pesados (ou escuros) como óleo combustível e coque, declinando a margem média.
A leitura desses fatos é que a Petrobras tentou articular um cenário que continuasse controlando o mercado brasileiro, permitindo eventual retorno ao monopólio de fato, seja para seu próprio bem no futuro ou para seu infortúnio como foi no passado. Essa é uma estratégia normal para uma empresa que tenta defender seu mercado conquistado, mas que deve ser combatida pelo órgão de defesa da concorrência.
Ao que parece, o CADE identificou a estratégia da Petrobras e juntamente com o governo e a nova gestão da empresa, pode dar grande contribuição para a dinamização futura do setor de refino.
Este cenário pode gerar importantes benefícios mútuos para o mercado e seus agentes, a saber:
- Como já está acontecendo, a Petrobras cede fatia de mercado para importadores, mas maximiza margens, sem topar as refinarias;
- Petrobras vende parcela de refinarias em mercados menos relevantes, levanta recursos para os investimentos no pré-sal e/ou equacionamento de dívidas. A estratégia de manutenção da presença nos pólos Sul e Nordeste, embora defensiva no sentido de evitar investimentos que canibalizem outros mercados, pode reduzir o número de interessados no negócio e consequentemente seu preço;
- Petrobras mantém presença no mercado mais relevante e rentável, além de permanecer com uma parcela de hedge natural para seus negócios de E&P;
- CADE percebeu a estratégia da Petrobras e sinaliza que é necessário maior desinvestimento para promover um cenário de concorrência real e não apenas aparente e potencialmente temporário;
- A nova gestão da Petrobras sinaliza que pode ser mais agressiva no desinvestimento no refino;
- Um eventual cenário de concorrência real, novos players podem investir na expansão da capacidade de refino, aproximando ao nível de demanda por derivados. Nesse caso, a referência de preços pode sair da paridade de importação e considerar exportação para outros mercados alternativos, em caso de sobreoferta eventual. Isso pode mudar os preços internos para baixo, pois hoje o frete e impostos na importação oneram as referências. Sem ter um oferta equilibrada com a demanda, será necessário importar derivados e os agentes econômicos só farão se os preços internos estiverem equivalentes aos preços internacionais após internalização em território brasileiro. Do contrário, o governo terá que subsidiar e a conta um dia chegará. Hoje não há mais espaço pra isso no orçamento da Petrobras tampouco no do governo. Portanto, praticar preços internacionais é inevitável.
- Um cenário de venda mais agressiva de ativos promove uma irreversibilidade do monopólio da Petrobras no refino após o governo atual. Faz-se necessário evitar o que ocorreu no passado quando a Petrobras vendeu 20% da REFAP para a Repsol e, após gerar enormes prejuízos para este parceiro via controle de preços, recomprou a participação.
- Esse cenário de concorrência real e preços livres permite viabilizar investimentos necessários no refino para atender a demanda nacional, pois a Petrobras não tem interesse nem folêgo financeiro para realizar tais investimentos isoladamente.
Conclusão
Não há necessariamente antagonismo entre privatização e estatização no mercado de refino. A Petrobras pode efetuar desinvestimento parcial que será bom para suas finanças. A concorrência também poderá fazer a estatal testar seu real nível de eficiência. Para o consumidor, os subsídios do período do governo Dilma foram um falso benefício, pois estavam pulverizados em consumo de combustível para a classe média, ao invés de investimentos em transporte público de massa, além de ter o objetivo de maquiar indicadores de inflação. Com isso a conta chegou. Houve uma contribuição significativa desta política de preços artificiais na drástica redução dos investimentos da Petrobras e na paralisação dos investimentos em capacidade de refino. Para se atingir um crescimento sustentável da oferta de derivados equivalente à demanda, faz-se necessário atrair investimento privado, seja nacional ou estrangeiro. Este investimento só virá com um ambiente de concorrência de fato, com regras claras e estáveis. Qualquer outra solução, passará por importação subsidiada de combustíveis que nem a Petrobras, nem governo, nem contribuintes poderão suportar.