Vaca Muerta

Análise: voltar a construir gasodutos estruturantes e tarifas; os gargalos para chegada do gás argentino

Parceria Brasil-Argentina, celebrada no G20, passa por uma agenda de curto prazo, para destravar primeiras importações de gás argentino; e outra de longo prazo, sobre alternativas de rotas

Alexandre Silveira fala sobre memorando assinado com a Argentina no setor de gás natural, no Museu de Arte Moderna do Rio, em 18/11/2024 (Foto Fernando Frazão/Agência Brasil)
Alexandre Silveira fala sobre memorando assinado com a Argentina no setor de gás natural, na 19° Reunião de Cúpula do G20, em 18 de novembro | Foto Fernando Frazão/Agência Brasil

RIO – Ao se comprometerem nesta segunda (18/11) a viabilizar o envio de gás natural da Argentina ao Brasil ao “menor tempo e com o menor custo possível”, os governos de ambos os países terão que se debruçar sobre duas agendas: uma de curto prazo, para destravar os primeiros negócios no verão de 2025, via Bolívia; e uma segunda, de médio/longo prazos, que passa por estudos de viabilidade de alternativas de rotas de importação.

Para a chegada do gás no curto prazo, a Bolívia é a única rota viável – e candidata natural a intermediária do gás argentino também a longo prazo. 

Sem concorrência à vista (até agora), a tarifa cobrada pela YPFB pelo serviço de trânsito internacional (de US$ 1,4 e US$ 2 o milhão de BTU) veio acima das expectativas do mercado (mais detalhes nos próximos blocos).

E coloca outras opções na mesa:

Todas as opções previstas no escopo dos estudos a serem conduzidos pelos governos de Argentina e Brasil.

Investir em infraestrutura para trazer o gás argentino ao Brasil, aliás, é uma necessidade que independerá da rota, se o comércio entre os dois países evoluir estruturalmente para volumes maiores e firmes – e mesmo que a Bolívia se consolide como o caminho escolhido. 

Pragmatismo

Argentina será superavitária na produção de gás e precisa capturar mercados para ancorar o desenvolvimento pleno de suas reservas de gás não-convencional em Vaca Muerta, na Patagônia.

Os governos antagônicos de Lula (PT) e Javier Milei assinaram nesta segunda (18/11) um memorando de entendimentos que cria um grupo de trabalho bilateral para identificar as medidas para viabilizar a integração gasífera Brasil-Argentina. 

A celebração da parceria coube aos ministros de Minas e Energia do Brasil, Alexandre Silveira (PSD), e da Economia da Argentina, Luis Caputo, em reunião durante a cúpula do G20, no Rio.

O GT, segundo o documento, estudará a construção de infraestruturas necessárias para interconectar os gasodutos existentes de cada país. Seja qual for o trajeto, grandes injeções de capital serão necessárias. 

E a tendência é que a construção de novos projetos demande contratos de suprimento de longo prazo – um desafio por si só, num momento de transição energética. 

Alexandre Silveira afirma que a demanda brasileira será suficiente para viabilizar os investimentos. Fica em aberto um eventual papel do Banco Nacional de Desenvolvimento Nacional (BNDES) no desenvolvimento dessa infraestrutura.

Sob Aloizio Mercadante, o banco demonstra apetite para ampliar o financiamento a projetos do tipo, mas faltam projetos na área de gás natural.

O entusiasmo com o financiamento de obras na Argentina, antes vocal, cessou desde que o aliado de Lula, Alberto Fernández, deixou o poder na derrota para Milei.

Os produtores argentinos miram no Brasil um mercado estratégico e que pode ser rentável. Caso os contratos de importação avancem no futuro para a modalidade firme, o gás argentino terá que se provar competitivo em relação às diferentes fontes de suprimento do Brasil – gás nacional, Bolívia, GNL – para conseguir deslocar os concorrentes.

Principalmente a Petrobras, agente dominante e formadora de preços e que tem uma oferta crescente nos próximos anos. A estatal, aliás, vem reduzindo os seus preços

Não tem mágica: o gás argentino vai buscar o preço Petrobras e a Petrobras vai buscar o gás argentino. Em setembro, a estatal brasileira assinou um memorando de entendimento com a YPF, para analisar negócios conjuntos em exploração e produção. As duas companhias são sócias em áreas na Bacia de Neuquén, no país vizinho.


Cinco rotas, quase todas concorrentes 

Dentro da Argentina, os investimentos na expansão da malha de gasodutos nos últimos anos permitem ao país exportar, via Bolívia, volumes limitados e sazonais (a YPFB fala em 4 milhões de m3/dia, numa primeira janela de oportunidades, no verão).

Para que os argentinos tenham capacidade de exportar volumes mais estruturantes e firmes ao longo de todo o ano, será necessário construir o 2º trecho do gasoduto Néstor Kirchner (rebatizado de Gasoduto Perito Francisco Pascasio Moreno pelo governo Milei).

O projeto daria mais flexibilidade ao sistema, permitindo o envio de volumes maiores de gás de Vaca Muerta ao Brasil, seja qual for a rota.

É o projeto que Lula defendeu financiar com apoio do BNDES.

A concorrência entre as rotas se reflete nos estados brasileiros, que querem a molécula entrando pelas suas fronteiras: Ratinho Júnior (PSD), no Paraná, Eduardo Riedel (PSDB), no Mato Grosso do Sul, e Eduardo Leite (PSDB), no Rio Grande do Sul.

Bolívia é a solução de curto prazo

A vantagem da Bolívia é a infraestrutura já existente. Mas o país andino é também o percurso mais longo para levar o gás de Vaca Muerta a São Paulo, de acordo com a Rystad. Os menores são via Uruguai e Uruguaiana – embora, nesses casos, sejam necessários investimentos maiores para conectar a Argentina ao trecho sul do Gasbol.

Do ponto de vista estratégico, apostar em rotas alternativas pode ser também uma forma de reduzir a dependência da Bolívia – e de sua instabilidade político-econômica.

Na política, por exemplo, Evo Morales acusa seu herdeiro Luis Arce de simular um autogolpe. É de Arce a promessa da reforma econômica após as eleições de 2025. Tenta impedir Morales de concorrer.

Se a Bolívia não reduzir sua tarifa de trânsito internacional, a construção de rotas alternativas pode fazer sentido, na visão do vice-presidente de Mercado de Gás da Rystad Energy Brasil, Vinicius Romano.

“Há outros caminhos que poderiam ter uma rota de menos quilômetros e poderiam ter uma vantagem econômica – a depender, principalmente, da tarifa que a YPFB colocar. Isso é chave para essa modelagem (…) Se for cobrado um preço de gasoduto novo, é possível afirmar que esse não é mais o melhor caminho”, disse, em entrevista à agência eixos.

Uruguaiana na gaveta há três décadas

É uma rota em estudo há décadas. O projeto original, do fim dos anos 1990, previa a construção de um gasoduto de 615 km de extensão, ligando Porto Alegre (RS) a Uruguaiana (RS), na fronteira com a Argentina e onde existe uma termelétrica. 

O empreendimento, da Transportadora Sulbrasileira de Gás (TSB), foi dividido em três trechos, mas apenas os dois extremos, que somam cerca de 50 km, saíram do papel: o trecho que conecta o Polo Petroquímico de Triunfo (RS) à Porto Alegre, onde termina o Gasbol; e o trecho entre Uruguaiana e a malha da transportadora TGM, na Argentina.

Seria preciso, portanto, construir o trecho restante, de mais de 500 km de extensão, para ligar Uruguaiana (e o gás argentino) ao Gasbol.

 A TSB é uma sociedade da Petrobras, com TotalEnergies, Ipiranga e Repsol – cada uma com 25% de participação..

Fertilizantes a partir do Chaco Paraguaio

Ligaria o norte da Argentina ao Gasbol, no Mato Grosso do Sul, sem passar pela Bolívia. É a rota que demandaria a maior quilometragem de infraestrutura nova: 550 km de território paraguaio, 100 km na Argentina e 500 km no Brasil. Por isso, é visto com certo ceticismo. 

Romano destaca que ao se analisar somente a tarifa de transporte do gasoduto em si, o projeto é a opção menos Interessante. Mesmo sendo um traçado longo, contudo, a rota pode fazer sentido econômico se, por exemplo, o Paraguai conseguir desenvolver no meio do caminho uma indústria de gás para fertilizantes – mirando exportação ao Brasil.

“O Paraguai não tem uma indústria de gás. Então ele poderia criar uma indústria de gás mais simplificada, onde a composição de custo total para uma produção de fertilizantes faz sentido”, comentou.

Uruguai também pode ser uma saída

País ligado à Argentina pelo Gasoducto Cruz del Sur. Essa rota demandaria a construção de um trecho entre a capital Montevidéu e Porto Alegre, distantes mais de 800 km.

Também exigiria a instalação de algumas plantas compressoras para aumentar a capacidade de transporte do gasoduto – concebido para atender à demanda do mercado limitado do Uruguai

GNL: a formação de preços internacionais 

Produtores do país vizinho, como YPF e Pan American Energy veem uma janela de oportunidade para posicionar o gás Vaca Muerta no mercado global da commodity. A instalação de plantas de liquefação demanda vultosos investimentos.

Historicamente, o Brasil importa GNL, sobretudo, para o consumo flexível das termelétricas, mas o mercado ganhou novos players (Edge, Eneva e New Fortress) que têm no gás liquefeito as principais fontes de suprimento de suas carteiras de comercialização e que já não miram o GNL apenas como fonte de gás de curto prazo para térmicas.


O que falta para o gás argentino chegar?

Agentes de mercado de ambos os países se movimentam para viabilizar o envio das primeiras moléculas de gás argentino ao Brasil na janela do verão, quando há um excedente de gás no país vizinho para exportação.

Segundo duas fontes que participam de negociações para importação de gás argentino, a expectativa é que as primeiras importações (em bases interruptíveis e volumes limitados) se concretizem no primeiro trimestre de 2025, já no fim dessa janela. Será um teste para o modelo dessa relação comercial.

Existem, hoje, cinco comercializadoras autorizadas pelo governo argentino a trazer gás do país vizinho para o Brasil, todos eles na modalidade interruptível:

  • Gas Bridge possui acordo com a Pluspetrol;
  • Matrix Energy com a Total Austral (via Bolívia);
  • MGás (J&F) com a Tecpetrol (via Bolívia) e Total Austral (via Uruguaiana);
  • PAE com a própria Pan American Energy (via Bolívia);
  • e Tradener com a Pan American Energy (via Bolívia);

Os acordos já estão pactuados. A percepção, entre as fontes consultadas pela agência eixos, é que a demanda em si não é uma preocupação, mas sim a coordenação dos ajustes finos necessários para que a importação de gás argentino se concretize.

É a agenda de curto prazo

A principal pendência é a indefinição, do lado argentino, da tarifa de transporte final do sistema interno.

As autorizações concedidas pelo governo local para envio de gás ao Brasil preveem hoje algumas estimativas desse custo (mas são estimativas). E elas variam bastante: de US$ 0,22 a US$ 4,71 o milhão de BTU – depende, nesse caso, da origem do gás e, por consequência, dos trechos de gasodutos a serem contratados.

Um gás que tenha origem nos campos do norte da Argentina, por exemplo, têm um custo baixo, porque já estão praticamente na divisa com a Bolívia. No outro extremo, um gás que venha dos campos offshore da Terra do Fogo, no sul, têm custos elevados.

Produtores argentinos também tentam derrubar o imposto de exportação.

Do ponto de vista da infraestrutura, as obras de reversão do Gasoducto Norte, que aumentam a capacidade de envio de gás de Vaca Muerta até a fronteira com a Bolívia, já foram parcialmente entregues. A conclusão deve ficar para o primeiro trimestre de 2025.

O projeto amplia a capacidade de envio de gás ao norte argentino em 19 milhões de m3/dia. Subtraindo a demanda regional no verão, haveria um excedente de 6 milhões a 7 milhões de m3/dia que poderia ser destinado aos mercados do Chile e Brasil


Custo Bolívia pressiona preço final

A tarifa cobrada pela YPFB para o trânsito internacional veio acima do esperado – por se tratar de uma infraestrutura já instalada. As empresas ainda nutrem a expectativa de tentar renegociar os termos. 

Fontes do mercado relatam, no entanto, que os custos de transporte para trazer o gás argentino de forma competitiva não são apenas um desafio na Bolívia. A tarifa da YPFB não tem sido encarada, portanto, como um impeditivo, isoladamente. 

Para ilustrar: no Brasil, o custo somado de entrada de gás em Corumbá (MS), na fronteira com a Bolívia, e retirada em São Paulo, é relativamente próximo da tarifa cobrada pela Bolívia – em ambos os casos com infraestruturas existentes. 

Por isso, apesar dos preços baixos da molécula de Vaca Muerta, não há uma expectativa, nesse primeiro momento, de que o gás argentino chegará com um rótulo de gás barato.

Mas pode chegar competitivo, ou seja, abaixo dos preços médios no Brasil (afinal, o problema aqui é o gás caro).

O preço previsto nos acordos de importação já autorizados pelo governo argentino varia de US$ 6,5 a US$ 9 o milhão de BTU na fronteira com a Bolívia – aos quais seriam acrescidos ainda os custos da infraestrutura da YPFB e Brasil (somam mais de US$ 3 o milhão de BTU).

Para efeitos de comparação, de acordo com dados mais atualizados do MME, o preço do gás vendido pela Petrobras às distribuidoras variava, em junho, de US$ 10,4 a US$ 12 o milhão de BTU (com transporte).